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O Relatório Mundial sobre Desigualdade de Gênero, elaborado e publicado anualmente pelo Fórum Econômico Mundial, avalia e classifica as nações sob quatro dimensões:
1. Empoderamento político feminino;
2. Participação e oportunidades econômicas;
3. Saúde e sobrevivência;
4. Educação.
Em 2021, o relatório apontou que a desigualdade de gênero na política continua a ser a maior das quatro lacunas rastreadas, e vem se agravando em relação aos anos anteriores. Nos 156 países avaliados, as mulheres representam apenas 26,1% de cerca de 35.500 assentos em parlamentos e apenas 22,6% de mais de 3.400 ministros em todo o mundo. Segundo o estudo, no atual ritmo de progresso, estima-se que serão necessários 145,5 anos para atingir paridade de gênero na política.
Considerando que o Brasil está aquém dessa média, com apenas 15,2% de representação feminina na Câmara, 16% no Senado, e 10% de ocupação nos ministérios, a paridade levará ainda mais tempo por aqui. A propósito, o relatório de 2020 concluiu: “A falta da atribuição de poder político às mulheres é o quesito que mais atrapalha o desempenho global do Brasil.”
Sabe-se que a violência contra os direitos políticos das mulheres é reconhecida como um dos principais obstáculos à plena participação feminina na política, pois além da violação em si, representa um risco para suas vidas. A ONU Mulheres inclui a violência política como temática prioritária a ser enfrentada globalmente.
No mesmo sentido, o Relatório Final da Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA), que acompanhou as eleições municipais brasileiras de 2020, registrou preocupação com o clima de violência política dirigida, em particular, contra as mulheres e suas famílias.
O estudo evidenciou um aumento do discurso agressivo e discriminatório nas campanhas eleitorais, especialmente por meio do uso da violência física e digital, sobretudo em redes sociais, com o uso de mensagens falsas. Por fim, recomendou ao Brasil revisar e avançar o campo de ações jurídicas imediatas para proteger a vida e a integridade de mulheres candidatas e outros grupos vulneráveis. Segundo o relatório: “legislar para prevenir, punir e erradicar a violência relacionada com a participação política”.
Também durante as eleições municipais de 2020, um diagnóstico do MonitorA, observatório de violência política contra candidatas nas redes, projeto de iniciativa da revista AzMina e do InternetLab, em parceria com o Instituto Update, analisou e coletou os dados de violência política de gênero em redes sociais (Twitter, Instagram e Youtube) de 175 candidaturas, homens e mulheres. O resultado do estudo é impactante: constatou-se um número muito superior de agressões dirigidas às mulheres quando comparado ao número de registros dirigidos aos homens. Além disso, as mulheres são atacadas pelo que são – mulheres, negras, idosas, trans – já os homens recebem ataques por suas atuações profissionais.
Recentemente, em 4 de agosto de 2021, foi aprovada no Brasil a Lei 14.192/2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher; alterando a Lei 4.737/1965 (Código Eleitoral), a Lei 9.096/1995 (Lei dos Partidos Políticos), e a Lei 9.504/1997 (Lei das Eleições), representando importante marco legislativo para as eleições de 2022, que serão as primeiras a contemplarem tal proteção jurídica na vida política às candidatas e detentoras de mandato eletivo.
Convém lembrar que, assim como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, a par de legislarem para prevenção, punição e erradicação do problema, e terem sido fruto de constrangimentos de organismos internacionais e da sociedade civil organizada, essas legislações, ao serem aprovadas, concedem maior visibilidade à temática da violência sofrida pelas brasileiras, trazendo o assunto para o centro do debate, o que por si só já pode ser proveitoso. Trata-se do efeito simbólico, de enviar uma mensagem sobre quais são as regras que o Estado e todos os cidadãos devem observar e respeitar, levando a uma maior conscientização social.
A Lei 14.192/2021 define em seu artigo 3º a violência política contra a mulher como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher. A redação do parágrafo único integra o conceito ao descrever igualmente como atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo.
Vale destacar que, em 2017, com o objetivo de contribuir no processo de harmonização entre a Convenção de Belém do Pará, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher - CEDAW e os diferentes contextos jurídicos nacionais sobre a violência política contra as mulheres na América Latina, foi elaborada a Lei Modelo Interamericana para Prevenir Sancionar e Erradicar a Violência Contra as Mulheres na Vida Política, cujo artigo 3º traz a seguinte definição:
Deve-se entender por ‘violência contra as mulheres na vida política’ qualquer ação, conduta ou omissão, realizada diretamente ou por terceiros que, baseadas no seu gênero, cause dano ou sofrimento a uma ou a várias mulheres, e que tenha como propósito ou resultado depreciar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício dos seus direitos políticos. A violência contra as mulheres na vida política pode incluir, entre outras manifestações, violência física, sexual, psicológica, moral, econômica ou simbólica.
O Relatório de Violência Política contra a Mulher critica a lei brasileira por não seguir a riqueza da Lei Modelo Interamericana, que, além de trazer o conceito de violência contra as mulheres na vida política, elenca expressamente condutas e omissões catalogadas como práticas violentas comuns contra o exercício político das mulheres.
Em que pese a lei aprovada no Brasil não arrolar as formas de manifestação dos tipos de violência política, de seus agentes e de sua vítimas, sugere-se que os operadores do Direito orientem sua prática jurídica pela Lei Modelo Interamericana, a fim de alinhar a atuação brasileira com os compromissos internacionais assumidos pelo país, numa espécie de “autocontrole de convencionalidade”.
Cumpre salientar que não apenas as agressões físicas, mas também outras formas de expressões violentas, em que haja impedimento, limitação ou bloqueio do exercício dos direitos políticos por uso de artifícios violentos, independentemente da sua natureza, ainda que culturalmente legitimados, caracterizam a violência política. As hipóteses de manifestação são muitas e incluem práticas como o menosprezo ao trabalho, às falas e ao protagonismo das mulheres, assim como qualquer ação que tenha potencial de afastar ou dificultar as suas vidas no campo político.
Grande parte dos estudos sobre a temática propõem a importância de legislar sobre os diferentes tipos de manifestações de violência política, isto é, física, sexual e psicológica, até porque possuem um impacto que vai muito além das vítimas propriamente ditas. Além de atacar seu alvo, esse tipo de violação possui o intuito de desencorajar todas as outras mulheres, demonstrando que a esfera política não é lugar para elas, de modo que o trabalho ou carreira política se torne tão difícil ou frustrante que as próprias mulheres desistem e se retiram do espaço público.
Outro ponto na lei brasileira que merece referência é falta do termo “gênero”. Ao que tudo indica, tratou-se de uma estratégia legislativa para evitar que questões ideológicas pudessem impedir a aprovação de tão importante norma. Além disso, nota-se que a lei é silente em relação a homicídios decorrentes da violência política de gênero, ponto destacado em legislações de outros países.
Contudo, não se pode olvidar que a lei brasileira foi bastante abrangente. Ela tratou de proibir propaganda partidária que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia e de criar novo tipo penal. Na parte dos crimes eleitorais, incluiu a divulgação de fato ou vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral, aumentando a pena de um terço até a metade se o crime envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher, ou à sua cor, raça e etnia (artigo 323, do Código Eleitoral).
O ponto de maior polêmica é o novo dispositivo penal, artigo 326-B do Código Eleitoral:
Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.
Como se vê, a norma restringiu a proteção às candidatas ou detentoras de mandato eletivo. Essa opção legislativa desampara as mulheres na trajetória que antecede o deferimento formal do registro de candidatura pela Justiça Eleitoral, isto é, no período das campanhas intrapartidárias, por exemplo, quando se realizam as convenções e finalmente se escolhe quem vai disputar as eleições, período em que ainda não podem ser consideradas candidatas.
De fato, nesse período as mulheres já estão vulneráveis à violência política e começam a sentir hostilidades de diferentes formas. Ademais, as agressões no contexto político eleitoral não se restringem às candidatas ou detentoras de mandato eletivo.
É prova disso, estudo do MonitorA que demonstrou como mulheres que nem estavam na disputa política sofreram violência. Foi o caso por exemplo de Renata Campos, economista e viúva do ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos. Ela não concorreu às Eleições de 2020 e mesmo assim foi alvo de ofensas nas redes sociais feitas por usuários que discordavam da candidatura do seu filho. Outro exemplo é o de Marina Silva, que mesmo não estando na disputa eleitoral, recebeu três tuítes ofensivos por hora em apenas dois dias, após declarar apoio à Manuela D’Ávila, que disputava a prefeitura de Porto Alegre e esteve entre as candidatas mais ofendidas nas redes sociais.
Percebe-se que qualquer mulher pode ser alvo de violência política, e o combate e prevenção precisa ser pensado de forma ampla, para além do âmbito político. Como apontado por Bianca Barroso, nesses casos, o suporte terá que vir da Lei 14.197/2021 que altera o Código Penal, dispondo sobre o crime de violência política, sem restringir a proteção à candidatas ou detentoras de mandato. O novo artigo 359-P destina-se a salvaguardar qualquer pessoa que possa ter o exercício de seus direitos políticos violados em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Em nota técnica, o Observatório de Violência Política Contra a Mulher destaca a ausência de escalonamento das condutas de violência política na lei brasileira, além de não prever sanções administrativas que poderiam colaborar no combate de práticas violentas, considerando ainda a complexidade da apuração criminal.
Por fim, sabendo-se que os partidos políticos são aliados imprescindíveis no enfrentamento à violência política contra as mulheres, a lei nacional incluiu a obrigação de adequarem seus estatutos à nova legislação.
Com efeito, para efetivamente combater a violência política contra mulher as ações devem ser plurais e articuladas. É preciso reconhecer os avanços que o Brasil obteve com a aprovação da Lei 14.192/2021, mormente, num país que não tinha legislação específica sobre o tema, mas ela precisa continuar a ser discutida e aprimorada para que tenhamos êxito em construir uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.
Referências:
ALBAINE, Laura. Violência política contra as mulheres: roteiro para prevenir, monitorar, punir e erradicar. PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. ONU Mulheres – Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres. IDEA Internacional – Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral. Brasília, 2020. Disponível em: < http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2021/12/Roteiro_HojadeRuta.pdf> . Acesso em: 21 Mar. 2022.
BARROSO, Bianca Stella Azevedo. A lei, a mulher e a violência política nas eleições de 2022. Jota. 2022 Disponível em: < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-lei-a-mulher-e-a-violencia-politica-nas-eleicoes-de-2022-22112021 >. Acesso em: 17 Mar 22.
COMISIÓN INTERAMERICANA DE MUJERES – CIM. Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará (MESECVI). Ley Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra las Mujeres en la Vida Política. Comité de Expertas del Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará (MESECVI), 2017. Disponível em: <https://www.oas.org/es/mesecvi/docs/LeyModeloViolenciaPolitica-ES.pdf>. Acesso em: 21 Mar. 2022.
FERREIRA, Desirée.; RODRIGUES, Carla. CUNHA, Silvia. (coord.) Relatório 2020-2021 de Violência Política Contra a Mulher. Brasília: Transparência Eleitoral Brasil, 2021, p. 37. Disponível em: < https://transparenciaeleitoral.com.br/wp-content/uploads/2021/12/Relatorio-de-violencia-politica-contra-a-mulher.pdf>. Acesso em: 17 Mar. 2022.
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OBSERVATÓRIO DE VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA A MULHER. Nota técnica sobre o projeto de lei de combate à violência política contra a mulher (n° 5.613/2020). Disponível em: <https://transparenciaeleitoral.com.br/wp-content/uploads/2021/07/Nota-tecnica-Nova-Lei- -VPM-2021.pdf> Acesso em: 17 Mar. 2022.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. MISSÃO DE OBSERVAÇÃO ELEITORAL ELEIÇÕES MUNICIPAIS. Brasil. Relatório Final. Disponível em: < http://scm.oas.org/pdfs/2022/CP45441PCP.pdf>. Acesso em 17 Mar 2022.
PINHO, Tássia Rabelo e. Debaixo do Tapete: A Violência Política de Gênero e o Silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n267271>. Acesso em: 17 Mar. 2022.
REVISTA AZMINA. Violência política de gênero: as diferenças entre os ataques recebidos por mulheres e seus oponentes. Dez, 2020, Atual. Mar. 2021. Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/violencia-politica-de-genero-as-diferencas-entre-os-ataques-recebidos-por-mulheres-e-seus-oponentes/ Acesso em: 17 Mar. 2022.
Débora do Carmo Vicente é mestre em Direito pela UFRGS, servidora da Justiça Eleitoral, coordenadora da Comissão de Participação Feminina Institucional do TRE-RS e membro da Abradep.
FONTE: REVISTA CONSULTOR JURÍDICO/CONJUR