Fosfina é a substância que, em um episódio do seriado "Breaking Bad", mata instantaneamente dois criminosos que respiraram o gás. Ataques assumidos pelo Estado Islâmico também usaram a substância. No Brasil, sem saber como descartá-lo, o gás foi queimado em alto mar.
Hoje a fosfina é proibida na forma gasosa e sua comercialização, para fins industriais, ocorre apenas em tabletes. Mas, em dezembro de 2014, a diretoria de Meio Ambiente do Porto de Santos encontrou cilindros de 1995 com o gás.
Ao todo, eram 115 cilindros com seis tipos de gases tóxicos e inflamáveis –como silano e fosfina– e até cancerígenos –diazometano.
Os cilindros foram importados e ficaram abandonados no armazém 11. A Codesp, empresa estatal que administra o Porto de Santos, alega não ter achado os responsáveis devido à falência da empresa dona da carga, a SID Microeletrônica, do grupo Sharp.
A SID foi uma das principais fabricantes de componentes eletrônicos para computadores, televisores e caixas automáticos no país. Ex-funcionários da empresa confirmaram à reportagem que as substâncias silano e fosfina eram importadas como matéria-prima para a fabricação dos componentes.
A maior preocupação do superintendente de Meio Ambiente da Codesp, Ivam Fernandes Doutor, era "a situação precária dos cilindros, cujas válvulas normalmente têm um prazo de validade de apenas dois anos".
Segundo ele, o transporte dos tubos também era delicado, pois o atrito de partículas cristalizadas dos gases com as paredes internas dos cilindros seria suficiente para gerar uma explosão, comprometendo um raio de 9 km.
Devido à gravidade da situação, a Codesp optou por conduzir o assunto em sigilo. Ainda em 2015, comunicou à Cetesb, à agência ambiental do Estado de São Paulo, a dois órgãos do Exército, aos Bombeiros, à Polícia Federal, entre outras autoridades.
A Cetesb multou a Codesp três vezes desde então. Duas delas por armazenamento irregular e uma por transporte inadequado, com valores que foram de R$ 50 mil a R$ 500 mil.
DESTINO: ALTO-MAR
A existência dos cilindros só veio a público em junho deste ano, quando o Conselho Municipal de Meio Ambiente do Guarujá negou autorização para queima dos gases dos cilindros na Base Aérea de Santos.
A área federal, no município do Guarujá, havia sido escolhida para o procedimento por ser isolada de concentrações humanas. No mesmo mês, o Ministério Público Estadual iniciou o inquérito reunindo autoridades para discutir possíveis destinações para o passivo ambiental.
Em julho, a empresa de emergências Suatrans foi contratada para escolher o local e conduzir a operação. Sob pressão da promotora Almachia Acerbi, que manteve as reuniões com prazos curtos para tomada de decisão, a empresa entregou análises de risco para cinco possíveis destinos: Base Aérea de Santos, Pedreira Engebritas, Ilha de Bagres, Armazém 10 (Codesp) e região oceânica.
Em qualquer um dos locais, os procedimentos de descarte seriam a queima dos gases e a descontaminação por diluição em tanques. Os cilindros vazios seriam retornados para aterros controlados.
A queima em alto-mar foi escolhida como a mais segura, devido à distância da população e a facilidade de dispersão dos gases pelo vento.
Com drones, submarinos, reatores, rebocadores e 12 técnicos da Suatrans voluntários para a operação de risco, os gases finalmente foram queimados a 100 km da costa. A operação foi concluída no final de setembro.
CRÍTICAS
A atuação do Ministério Público foi criticada por ambientalistas, que consideraram a decisão açodada, e que chegaram a pedir a realização de audiência pública.
Um dos autores do pedido, o especialista em Direito do Mar e professor da Unifesp Rodrigo More, consultou os documentos anexados ao inquérito civil público, mas não encontrou informações sobre as análises de risco e os planos de trabalho –que estavam em um pen drive, com acesso restrito.
Para More, "a pressa e a falta de transparência criaram pânico e impediram a consideração de outras soluções".
Para a agente ambiental do Ibama Ana Angélica Alabarce, a decisão é técnica e não caberia abrir a discussão para leigos. "Muita gente falou besteira, pessoas totalmente desqualificadas quiseram botar política, mas os planos de ação são exímios e feitos pela única empresa que se mostrou capaz de resolver essa situação sem nenhum impacto ambiental", pontua.
No entanto, a solução não surgiu do corpo técnico, mas sim de uma reunião entre autoridades no Ministério Público –a ideia do alto-mar como destino foi atribuída à promotora Almachia Acerbi. Ela diz que "a solução não foi imposta pelo Ministério Público; também foi estudada."
O oceanógrafo Fabrício Gandini, diretor do Instituto Maramar, lembra que o procedimento é inédito e se preocupa com a criação de um precedente. "Abre-se uma brecha para a velha ideia do mar como lixão. Agora vamos fazer todo descarte no mar porque está longe dos nossos olhos?", questiona.
"Essa história não pode se tornar um padrão", defende a professora de Direito Ambiental da Universidade Católica de Santos, Norma Sueli Padilha. Para ela, a identificação dos responsáveis seria "importante para o país, que hoje tem tantos passivos ambientais esquecidos".
A promotora Almachi Acerbi lembra que o Ministério Público também investiga produtos perigosos nos armazéns do Porto de Santos e já exigiu da Codesp planos de evacuação.
Ela já havia advertido a Codesp sobre uma possível apuração de improbidade administrativa. "Só estava sendo dura", afirma. E resolve que "não havendo dano ambiental durante o descarte, encerramos este inquérito na promotoria de Meio Ambiente".
POSSÍVEIS RESPONSÁVEIS
Apesar de ser tida pelos ex-funcionários como falida, a SID aparece com CNPJ ativo na Receita Federal. Está registrada em nome de Massaru Kashawagi, que negou ser o atual dono da empresa. "Fui diretor financeiro apenas em 2001 e a Sid faliu em 2002", afirmou por telefone.
O executivo Luis Roberto Poggeti foi diretor da empresa, de acordo com relatório para investidores da Emis (Euromoney Institutional Investor). Em 1995, Pogetti era diretor de controle da Sharp e chegou a diretor-superintendente do grupo em 1999.
Através de e-mail de sua assessoria, Pogetti afirma que "se desligou em janeiro de 2001 e não tem qualquer conhecimento sobre o assunto." Hoje o executivo é presidente do Conselho de Administração da Copersucar, a maior exportadora de açúcar e etanol do país –que tem seu terminal no Porto de Santos.
Gilberto Passos de Freitas, professor de Direito Ambiental da Universidade Católica de Santos, cita o artigo 56 da Lei de Crimes Ambientais (lei 9605/98), que prevê pena de multa e reclusão de um a quatro anos para quem processar ou armazenar substâncias tóxicas em desacordo com as exigências estabelecidas em lei.
Perguntado se o crime já estaria prescrito, o ex-desembargador e juiz aposentado lembra que o "dano ao ambiente é imprescritível" e, no caso dos cilindros, "o crime é permanente", pois o abandono se estendeu e colocou a população em risco durante duas décadas.
Segundo Freitas, "sócios e administradores da empresa falida devem ser procurados e a responsabilidade deve ser dividida também com o Porto de Santos e os órgãos fiscalizadores, que também falharam".
Outra especialista em Direito Ambiental, Norma Sueli Padilha, concorda. "A responsabilidade é de quem causou o desequilíbrio ambiental. Mas pelo tempo que está ali, também tem que se apurar a responsabilidade dos órgãos de fiscalização. Todos erraram em cadeia", afirma.
FONTE:FOLHA DE S.PAULO