Nesse sentido, a ministra Marina Silva está empenhada em levar adiante o acordo comercial Mercosul-UE. O que a senhora acha que é necessário para que isso aconteça?
Acho que, antes de tudo, o governo brasileiro precisa restabelecer toda a legislação e as instituições ambientais que foram desmanteladas por Bolsonaro, porque acho que sem isso não poderemos ter nenhum acordo comercial que estimule ainda mais o desmatamento nas exportações de produtos agrícolas, enquanto não tivermos uma rede de segurança para que não ocorra mais desmatamento.
Portanto, acho que essa é a precondição para que eu tenha qualquer conversa sobre qualquer acordo comercial e, então, acho que partes do acordo comercial precisam ser ajustadas.
É um texto muito antigo, de 20 anos atrás. Tem padrões de sustentabilidade realmente não vinculativos, suspensos, que no final não terão grande efeito. Então precisamos ajustar isso e colocar a sustentabilidade e o combate ao desmatamento no centro do acordo, e só assim poderemos avançar.
A senhora poderia, por favor, descrever em que estágio está a implementação do Green Deal [Acordo Verde] da União Europeia?
O Green Deal é o objetivo abrangente de criar uma economia neutra em relação ao clima na União Europeia, no máximo até 2050, mas provavelmente ainda mais depressa.
E todo o Green Deal é composto por vários documentos legislativos que garantem que atingiremos esse objetivo. Por exemplo, no que diz respeito a expandir as energias renováveis, maior eficiência energética, e também economias circulares, e ainda muitos artigos de legislação que estão sendo negociados no momento para que o meio ambiente alcance a neutralidade climática e também para mantermos nossa competitividade, ou mesmo aumentá-la, porque acreditamos que esse é o futuro. O futuro só pode ser defendido como um todo.
Como a senhora vê a implementação do acordo até agora?
Nós, verdes, infelizmente, não somos a maioria no Parlamento Europeu, e muitas das legislações que estamos votando não vão longe o suficiente. Por isso, há sempre grandes brigas políticas e ideológicas no Parlamento Europeu, e também nos Estados-membros, sobre até onde podemos ir.
Digamos que o lado direito do Parlamento diga "ok, se formos longe demais, destruiremos nossa economia". Nós dizemos que se não protegermos o clima também destruiremos nossa economia e o futuro de nosso planeta. Dizemos que estamos no caminho certo, que vamos na direção certa, mas precisamos ir mais rápido.
A senhora preside o Comitê de Comércio Interno e Proteção ao Consumidor. Como o comércio pode contribuir para o esforço global contra a mudança climática e uma melhor proteção dos direitos humanos?
No momento, do modo como o comércio está organizado e como a OMC [Organização Mundial do Comércio] e muitos acordos comerciais bilaterais funcionam, temos muitos problemas quando se fala nas causas das mudanças climáticas ou quando se trata de realmente proteger os direitos humanos.
Precisamos de padrões de sustentabilidade e acordos comerciais realmente executáveis, e que a sustentabilidade seja integrada em todos os acordos. Também precisamos examinar o transporte, porque o modo como os transportes globais funcionam, a remessa constante de mercadorias de um continente para outro, também precisam ser mais sustentáveis.
Qual a sua opinião sobre a versão atual do regulamento da UE para cadeias de abastecimento livres de desmatamento?
Eu negociei esse caso na Comissão do Mercado Interno e o acompanhei muito de perto. Acho que esse novo regulamento é realmente uma espécie de revolução, se você pensar bem, porque pela primeira vez temos regras na União Europeia que avaliam as cadeias de suprimentos e, no final, vão proibir a importação de mercadorias de áreas desmatadas.
Esse é um grande passo na luta global contra o desmatamento, e nós e o Parlamento Europeu, especialmente com os verdes, conseguimos fortalecer a proposta da comissão. No fim, não conseguimos tudo o que queríamos nas negociações com os Estados-membros. No entanto, acho que é realmente uma regulamentação muito boa e espero que também tenha impactos no Brasil e ajude a combater o desmatamento.
O que virá a seguir em relação a esse processo?
A legislação ainda precisa ser votada oficialmente no Parlamento, porque tivemos o chamado resultado do trílogo em dezembro. É como uma negociação informal entre o Parlamento e o Conselho, então há um período de transposição de 15 ou 16 meses, e depois entra em vigor.
Como o Brasil poderia se engajar melhor nesse processo de agora em diante?
Acho importante que as partes interessadas no Brasil que exportam mercadorias reguladas por essa nova lei —por exemplo, óleo de soja ou palma, ou gado— realmente se adaptem e certifiquem-se de que não estão desmatando muito, mas se concentrem em áreas que já estão desmatadas ou que já são campos. É importante entender que, quanto mais o Brasil não desmatar, mais fácil será a exportação.
E como expandir a adoção dessas regulamentações para além da Europa, chegando a mercados como a China, menos engajados em sua agenda socioambiental?
É muito importante cooperar com outros países, porque, claro, existe o medo de que as empresas depois exportem seus produtos limpos para o mercado europeu, e os outros produtos de áreas que foram desmatadas recentemente, para a China. E é por isso que é realmente importante ter países como a China a bordo.
Já existe muita comunicação. Há negociações com a China ou a Rússia no momento. Acho que também precisamos de um entendimento global sobre isso.
O acordo da COP de dezembro na Conferência de Biodiversidade da ONU [realizada no Canadá] realmente está ajudando, porque temos um acordo global de que todos os países querem manter as florestas, e também a China comprometida com isso. Portanto, acho que esse acordo internacional claramente ajuda.
Há uma discussão em andamento sobre a reforma da OMC (Organização Mundial do Comércio). O que a senhora acha que deveria acontecer na organização para fortalecer sua agenda ambiental e climática?
A OMC tem uma cláusula de exceção, o famoso Artigo 20 do acordo GATS (Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços, na sigla em inglês), em que os Estados-membros da OMC têm certo espaço de manobra para implementar uma regulamentação social sustentável para também discriminar entre produtos. Acho que esse artigo deveria ser mais usado e deve ser fortalecido.
Também precisamos realmente reformar a OMC para tornar a proteção climática, o clima em geral, o centro da OMC, o que ainda não é o caso.
Sabemos que qualquer reforma na OMC é muito trabalhosa, demora muito. Outros Estados-membros precisam concordar, mas acho que sim, os tempos mudaram desde os anos 90, desde que a OMC foi fundada, e é realmente importante também incluir o Acordo de Paris, os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) na OMC.
A senhora vê alguma oportunidade para isso em curto prazo?
Sim, acho que estão acontecendo discussões, por exemplo, mais acordos sobre produtos verdes ou para facilitar produtos que sejam mais amigáveis ao clima.
Quero dizer, é mais como uma fruta ao alcance da mão, porque tem mais a ver com liberalização, e isso é sempre um pouco mais fácil na OMC. E acho que outras discussões estão acontecendo, como o acordo de subsídios à pesca, que é uma questão há anos, claro, também muito importante. Já as reformas estruturais mais demoradas são mais importantes, mas também mais difíceis.
Os negociadores da União Europeia chegaram recentemente a um acordo para reformar o esquema de comércio de emissões da UE. O que isso significa?
Significa que estamos realmente obtendo a maior legislação climática do mundo, e é por isso que é tão importante, claro, também porque a União Europeia é um dos maiores emissores, também historicamente.
A reforma desse esquema de comércio de emissões, que emite muitos certificados, basicamente aumentará o preço do CO2 na Europa e limitará as emissões de CO2 automaticamente —e, com sorte, nos colocará no caminho de 1,5°C [limite de aquecimento do planeta, pelas metas do Acordo de Paris]. Portanto, esta lei é, penso eu, um grande passo à frente.
O que deve ser priorizado para reduzir a dependência da Europa do gás e petróleo russos o mais rápido possível e promover uma transição energética verde e justa, considerando o aumento das importações de gás natural liquefeito russo? A terrível Guerra da Ucrânia infelizmente mostrou o que nós, como verdes, já vínhamos dizendo há alguns anos: que é perigoso, que estamos realmente nos tornando muito dependentes de regimes autoritários com nossas importações de combustíveis fósseis.
Os combustíveis fósseis em geral o tornam dependente, enquanto as energias renováveis são como energias de liberdade. Você pode produzir em casa, pode usar sua eólica, sua solar, e assim por diante.
Portanto, pensamos que a aceleração das energias renováveis, mas também qualquer legislação que nos ajude a reduzir o consumo de energia e o uso de recursos como a economia circular, nos ajudará a nos livrar do combustível fóssil russo. Temos o Acordo Verde da UE e dizemos que o Acordo Verde é realmente a resposta à agressão russa na Ucrânia, que nos tornará mais independentes de regimes autoritários no futuro.
Mas qual é a proposta dos verdes em termos de combinar as prioridades de curto e longo prazos?
Como a senhora disse, ainda não teremos grandes transformações de um dia para o outro, mas, em termos da melhor combinação de medidas de curto e longo prazos, qual é a proposta do Partido Verde? É muito importante que, se no momento estamos substituindo o gás russo por um que não nos bloqueie, que não tenhamos contratos que duram mais 20 anos, mas que tenhamos estruturas de curto prazo.
Por exemplo, também construímos terminais de GNL muito rapidamente na Alemanha porque não tínhamos um, mas também é muito importante garantir que eles possam ser transformados o mais rápido possível em terminais de importação de hidrogênio.
FONTE: FOLHA DE S.PAULO