Fishing boats in Zhoushan, China's largest fishery, in September 2015. With its own coastal waters depleted, China has built a global fishing operation unmatched by any other country. | GILLES SABRIE / THE NEW YORK TIMES

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Casos de trabalho análogo a escravidão se multiplicam; tripulantes morrem em alto mar por falta de atendimento  

A BORDO DO SAM SIMON NO ATLÂNTICOEsta história é a segunda de uma série de quatro capítulos e foi produzida pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização de jornalismo sem fins lucrativos em Washington. A reportagem e a redação tiveram contribuição de Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan, Daniel Murphy e Austin Brush. Esta reportagem recebeu apoio do Pulitzer Center.

Primeiro, ele estava com muita sede. Depois começaram as convulsões. Cansado demais para se levantar, ele não conseguia fazer xixi e vomitava toda a água que ingeria.

Fadhil, um indonésio de 24 anos, estava trabalhando a mais ou menos 530 quilômetros da costa do Peru em um navio chinês de pesca de lulas chamado Wei Yu 18. Quando começou a se sentir mal, ele implorou ao chefe que o mandasse de volta para receber cuidados médicos em terra firme. O chefe recusou o pedido, deu a ele apenas um anti-inflamatório e disse que o seu contrato não tinha terminado.

Após quase um mês doente, Fadhil disse a outro marinheiro indonésio chamado Ramadhan Sugandhi: "Meu corpo precisa chegar até os meus pais". Ele morreu no dia seguinte, em 26 de setembro de 2019. O capitão ordenou que a tripulação enrolasse o cadáver em um cobertor e o guardasse no congelador junto com as lulas. Menos de dois dias depois, a tripulação colocou Fadhil em um caixão de madeira, junto com a corrente de uma âncora para ajudar o caixão a afundar, e o jogaram na água. 

"Me senti inútil e sem esperança ao ver a cena," disse Sugandhi.

Quando aceitou o emprego a bordo do Wei Yu 18, Fadhil adentrou o que é, possivelmente, a maior operação marítima que o mundo já conheceu. Impulsionada pelo crescente e insaciável apetite mundial por frutos do mar, a China expandiu dramaticamente o seu alcance em alto mar, com uma frota de pesca em águas distantes que chega a 6.500 navios, mais que o dobro de qualquer concorrente global.

Atualmente, a China também administra terminais em mais de 90 portos espalhados pelo mundo, comprando lealdades políticas principalmente de países costeiros da América do Sul e da África Ocidental. Ela se tornou, indiscutivelmente, a superpotência mundial de frutos do mar.

Mas o reinado da China no mar foi construído com alto custo humano e ambiental. A pesca é classificada como o trabalho mais letal do mundo, e os navios chineses de pesca de lula estão, segundo vários critérios, entre os mais brutais. Servidão por dívida, tráfico humano, violência, negligência, lesões evitáveis e mortes são comuns em sua frota.

Quando a Environmental Justice Foundation entrevistou 116 tripulantes indonésios que trabalharam entre setembro de 2020 e agosto de 2021 em navios chineses de águas distantes, cerca de 97% deles relataram alguma forma de servidão por dívida ou confisco de dinheiro e documentos, e 58% relataram ter visto ou sofrido violência física.

Em comparação com outros países, a China não apenas respondeu menos às regulamentações internacionais e à pressão da mídia quando os assuntos são direitos trabalhistas ou preservação do oceano, mas também foi menos transparente em relação aos seus barcos pesqueiros e fábricas de processamento. É o que diz Sally Yozell, diretora do Programa de Segurança Ambiental do Stimson Center, organização de pesquisa americana situada em Washington.

Como grande parte dos frutos do mar consumidos no mundo é pescada ou processada na China, afirma, é particularmente difícil para as empresas saberem se seus produtos têm envolvimento com a pesca ilegal ou abusos de direitos humanos.

A trajetória de Fadhil é emblemática do tipo de trabalho análogo à escravidão que é comum nessa frota. Em entrevistas, três tripulantes indonésios que também estavam a bordo do Wei Yu 18 disseram que nunca haviam trabalhado em alto mar antes, nem sabiam dos riscos de aceitar esse emprego.

O trabalho forçado, segundo a definição da Organização Internacional do Trabalho, existe quando dois critérios são atendidos: trabalho involuntário e coerção. Vários exemplos desses critérios foram encontrados no Wei Yu 18, de acordo com uma investigação confidencial do navio produzida em julho de 2020 pela C4ADS, empresa de pesquisa de segurança. O relatório citou outros fatores, incluindo espancamentos, alimentos e condições de vida insalubres e servidão por dívida, concluindo que havia evidências claras de trabalho forçado no navio.

Fadhil, muito provavelmente, morreu de uma doença chamada beribéri, que é causada por uma severa deficiência de vitamina B1. Essa doença apareceu historicamente em prisões, manicômios e campos de imigrantes, mas foi em grande parte erradicada. Ela é, no entanto, predominante em navios chineses de pesca em águas distantes. Esta tendência perturbadora é facilitada pelo transbordo, uma prática cada vez mais comum que permite aos navios transportar o seu pescado para navios frigoríficos e assim não precisar regressar à terra. Isto significa que os navios de pesca permanecem frequentemente no mar durante mais de dois anos, algo perigoso para os trabalhadores a bordo, que muitas vezes ficam subnutridos.

Alguns países exigem que o arroz e a farinha sejam suplementados com vitamina B1, mas este não é o caso na China. A doença também pode ser tratada com pílulas de vitaminas, mas muitos navios não as transportam. Quando a vitamina B1 é administrada por via intravenosa, os pacientes normalmente se recuperam em 24 horas. Infelizmente, porém, muitos capitães frequentemente se recusam a transportar tripulantes doentes para a terra para tratamento devido às despesas e ao tempo necessário para fazê-lo.

Os familiares de Fadhil receberam uma carta de reconciliação que, segundo lhes disseram, era por causa do seguro. Apesar das fotos de seu caixão sendo jogado no mar, o acordo dizia que a família havia sido auxiliada na apresentação de um pedido de indenização para Fadhil, que, de acordo com a carta, "morreu depois de cair no mar."

Solicitado para analisar o caso, Victor Weedn, médico legista em Washington, disse que permitir que marinheiros morram de beribéri provavelmente constitui crime de negligência, uma vez que a doença é facilmente prevenida por meio de alimentação adequada ou pílulas vitamínicas e que seus sintomas podem ser rapidamente revertidos com os cuidados adequados.

Dito isso, Weedn falou que permitir que as vítimas sofram e morram ao longo de semanas é inconcebível. "Assassinato em câmera lenta," disse ele, "ainda é assassinato."

FONTE: FOLHA DE S.PAULO