Não se constrói uma sociedade mais justa desamparando a força motora do desenvolvimento que é o trabalhador
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, pautadas pela observância dos princípios que asseguram a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Refiro-me, aqui, a compromissos firmados pelo Estado brasileiro em sua Carta Constitucional, mais precisamente em seus artigos 1º e 3º, e que são, por isso, indisponíveis aos governos de plantão.
Nas relações internacionais, o Brasil comprometeu-se, também em sua Carta Política, com a prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, da CF), inclusive garantindo a inserção no seu direito interno, com status constitucional ou supralegal, a depender do quórum de aprovação, dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos de que seja signatário (art. 5º, § §2º e 3º, da CF).
Não obstante toda essa teia de proteção jurídica, e do comprometimento abnegado de alguns operosos agentes do Estado, o Brasil ainda vive um cenário nada alentador de desigualdade social, de pobreza extrema e de cruel exploração do trabalho humano.
Temos em nosso país mais de 2,5 milhões de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil (dados PNAD 2016), sendo parte considerável desse contingente vítima também de trabalho forçado ou de exploração sexual. Essa triste realidade, que contribui em grande medida para a evasão escolar, perpetua o ciclo de miséria, segrega gerações futuras e compromete o projeto de um país que pretende um desenvolvimento sustentável.
Aliás, a Carta de Brasília pela Erradicação do Trabalho Infantil, extraída do 4º Seminário Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem, promovido pelo Tribunal Superior do Trabalho em outubro de 2018, aponta dados alarmantes quanto ao tema, proclama a necessidade urgente de eliminação do trabalho infantil e denuncia a existência de formas ainda mais aviltantes desse labor precoce, que são aquelas que incluem “a escravização moderna, exploração sexual e pelo tráfico de drogas, as atividades domésticas em lares de terceiros e outras modalidades que ampliam os riscos a que são submetidas as pequenas vítimas […]”.
A mesma Carta lembra a necessidade de cumprimento pelo Brasil da meta 8.7 do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) N. 8, da Organização das Nações Unidas (ONU), “que propõe a adoção de medidas eficazes para eliminar imediatamente as piores formas de trabalho infantil e, no mais tardar até 2025, extinguir o trabalho infantil em todas as suas formas, o que exige uma rede de proteção articulada e fortalecida”. (publicada no site do FNPETI – http://www.fnpeti.org.br)
Mas não é esse o único desarranjo social relacionado ao trabalho que se assiste no Brasil. Nosso país ainda é marcado pelas persistentes formas contemporâneas de escravidão. Desde 1995, quando foram montados Grupos Especiais de Fiscalização Móvel para combater o trabalho em condições análogas à de escravo, conduzidos pelo Ministério do Trabalho, e contando com a participação ativa do Ministério Público do Trabalho e das Polícias Federal e Rodoviária, foram resgatados mais de 53 mil trabalhadores nessa situação.
Considerando apenas o período a partir de 2003, quando lançado o I Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, o número de trabalhadores resgatados até o mês de julho de 2018 foi de 44.219, conforme dados extraídos do COETE (MTb, 2003 a 2018) e divulgados também pelo Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil (https://observatorioescravo.mpt.mp.br/).
Evidentemente que são dados numéricos que não revelam o quadro real, seja porque alcançam apenas os trabalhadores resgatados, seja porque as fiscalizações empreendidas pelo Grupo Móvel não conseguem atingir todos os nichos de exploração abusiva do trabalho humano, tendo em vista a reduzida estrutura de pessoal e as dificuldades orçamentárias que enfrenta para custeá-las.
Os instrumentos jurídicos internacionais são uníssonos em enquadrar o trabalho escravo e degradante como violação grave aos direitos humanos. Da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (art. IV) ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (art. 8º) e ao Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 6º), passando pela Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 6º) e pelas Convenções 29 e 105 da OIT, há uma clara postura internacional de repugnância a toda forma de escravidão e trabalho forçado.
A proibição de trabalho em condições análogas à de escravo integra o jus cogens do direito internacional, sendo, assim, de cumprimento obrigatório, absoluto e inderrogável, com efeitos erga omnes.
Além dessas relações indignas de trabalho, que já revelam um quadro preocupante que avilta a nossa ordem constitucional e configura violação a compromissos internacionais assumidos pelo país de respeito ao ser humano em sua dimensão de dignidade, convivemos ainda com um alarmante índice de desemprego (mais de 12 milhões de desempregados) e com a prática contumaz do patronato de desrespeito aos direitos trabalhistas, situação que cada dia mais aprofunda a desigualdade social.
Um país que convive com esses problemas no campo das relações de trabalho, não pode prescindir de uma pasta executiva como a do Ministério do Trabalho.
Além da definição de políticas para geração de emprego e renda e modernização das relações de trabalho, o Ministério do Trabalho tem ainda como uma de suas inúmeras e relevantes atribuições a de fiscalizar o cumprimento das normas trabalhistas pelos empregadores e impor sanções àqueles que relutam em garantir aos trabalhadores o patamar civilizatório mínimo de preservação da sua dignidade.
A proposta do futuro governo, alardeada em entrevista pelo eleito, e divulgada por toda a imprensa, de extinção do Ministério do Trabalho, para supostamente fundi-lo a um outro ministério que sequer soube identificá-lo, revela um preocupante desapreço pelo trabalho como valor social e por todos aqueles vivem do trabalho.
Não se constrói uma sociedade mais justa e mais humana, que é compromisso firmado pelo Estado brasileiro em seu pacto constitucional, desamparando a força motora do desenvolvimento que é o trabalhador.
Uma nação socialmente equilibrada é aquela que sabe conduzir com justiça a relação conflituosa entre o capital e o trabalho. E isso não se consegue desmontando os instrumentos estatais de proteção do trabalhador, que significa entregá-lo à própria sorte, submetendo-o aos pendores exploratórios próprios da sanha predatória do capital.
Caminhará o Brasil, em se concretizando esses rumos anunciados, para a negação de sua própria ordem constitucional, e, na contramão da progressividade dos direitos sociais, seguirá pela estrada involutiva da refutação dos princípios que formam a dimensão ética dos direitos humanos.
Enfim, extinguir, fundir ou desaparelhar o Ministério do Trabalho será condenar o país à barbárie social.
LUCIANO FROTA – Conselheiro do CNJ - Presidente do Comitê Nacional Judicial de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condição Análoga à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas.