Por Patricia Villen [imagem: Jacob Lawrence, The migration series]
Um elemento que compõe o atual cenário de crise econômica e política no Brasil, e que certamente ganhará importância nos próximos anos, é a produção de emigrantes, brasileiros e não-nacionais.
Como é sabido, o fenômeno da emigração começou a despontar com força no Brasil nas “décadas perdidas” (1980 e 1990). Esse período inaugura uma nova dinâmica populacional em relação aos fluxos internacionais de entrada e saída de pessoas no/do país, já que pela primeira vez na sua história com tradição de imigração passou-se a produzir mais emigrantes do que imigrantes.
Diversos estudos têm mostrado os impactos perversos da atual crise para a oferta e a qualidade do emprego no Brasil, situação agravada pelas políticas e reformas legislativas recentemente aplicadas. Com base em dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Di Cunto (2018) aponta que o Brasil, em julho de 2018, é o segundo país com maior taxa de desemprego na América Latina (12,3%, perdendo apenas para o Haiti).
Além de ser atingindo pelo desemprego, os brasileiros também se deparam com um forte movimento de rebaixamento de suas condições de vida, ligado sobretudo a um tipo de trabalho ofertado que está longe de permitir a estruturação de uma vida com segurança e dignidade. A reforma trabalhista aplicada no ano de 2017, motivada pelo imperativo da flexibilização e da modernização das relações trabalhistas, representou um ataque brutal aos direitos dos trabalhadores. Como em muitos outros países, sobretudo da periferia da Europa, essas reformas não tiveram e não terão nenhum impacto na diminuição do desemprego (Gallino, 2011). O que se constata, ao contrário, é a multiplicação dos minijobs, empregos precários, temporários, sem garantias e sem direitos, com baixos salários, jornadas longas, flexíveis e intensas. Há autores, como Antunes (2018), que descrevem o novo cenário da reforma trabalhista como um movimento de “indianização” do Brasil, para destacar como o país pode chegar, em pouco tempo, a ter um quadro similar ao da Índia, onde a qualidade do emprego é tão baixa e as taxas de informalidade tão altas a ponto de obrigarem milhões de pessoas a morarem nas ruas.
Para ilustrar a gravidade ímpar da atual crise, geralmente se remete ao contexto de 1930. Todavia, nesse momento histórico parte significativa da população brasileira ainda se encontrava no campo, podendo contar com um grau relativo de independência com relação a produtos básicos de sobrevivência, como a água, o alimento, além da própria moradia. Hoje, ao contrário, 85% da população brasileira vive no espaço urbano e há uma maioria esmagadora de pessoas que tira sua sobrevivência cotidiana de uma renda associada ao trabalho (formal ou informal) ou a um pequeno negócio. Portanto, essas pessoas estão totalmente suscetíveis ao rápido aumento do desemprego e à queda da renda e plenamente expostas à insegurança.
O que acontecerá para os jovens brasileiros recém-formados que enfrentam um cenário que oferece poucas perspectivas de melhora em curto prazo? Qual será a alternativa para a classe trabalhadora – até mesmo para a fração mais favorecida dos estratos médios – para superar as altas taxas de desemprego e um mercado de trabalho estagnado (nos setores público e privado)? Como poderão lidar com o enxugamento dos serviços públicos, que se tornarão ainda mais escassos e de pior qualidade?
Não há dúvida de que as “lógicas de expulsão”, marcas da “brutalidade característica da economia global” (Sassen, 2014) e acentuadas pelo atual contexto de crise, também estão plenamente ativas, hoje, no Brasil. A emigração em massa é um sintoma que não deve ser desprezado, pois reflete o aumento exponencial do desemprego, da violência provocada pelo aumento das desigualdades, o rebaixamento de salários e de direitos e a degradação das condições de vida. Sobretudo, esses movimentos de saída mostram como os brasileiros, hoje, também fazem parte da face imigrante do trabalho, que é fundamental para se compreender a classe trabalhadora em escala global (Villen, 2018).
Além dos fatores acima destacados, essa emigração revela também o funcionamento de um “mercado global dos recursos humanos qualificados” (Pizarro, 2005), que atrai pessoas, em idade ativa e com perfil qualificado, dispostas a emigrar, mesmo tendo que enfrentar as barreiras burocráticas dos Estados e a aceitar um regime temporário de permanência, sujeito a regras rígidas. O imperativo da mobilidade internacional coloca-se hoje para jovens recém-formados, bem como para adultos em idade avançada, que não obstante possuírem um nível alto de qualificação – muitos são pós-graduados – e às vezes experiência de anos de trabalho, são obrigados a fugir do desemprego ou da flexibilidade, que geram insegurança e, sobretudo, uma dificuldade extrema de fazer qualquer planejamento de vida futura. Essa mobilidade atinge também famílias de classe média que se achavam protegidas e, ao sentirem suas condições de vida se rebaixando, buscam a emigração.
Não é de se excluir também a possibilidade de produção de refugiados políticos brasileiros, dentro de um contexto de ascensão dos movimentos da extrema direita. Já estavam em andamento, e agora tendem a se tornar regra, os modos despóticos, persecutórios e também difamadores contra as diversas formas de reação e crítica ao status quo, que atingem sobretudo as lideranças de movimentos sociais (como mostra o aberrante caso do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de muitos outros militantes), mas também professores e estudantes. Muitas dessas técnicas de governo já foram utilizadas durante o período ditatorial e retornam das “cinzas” para impor uma ordem antidemocrática de caráter conservador em diferentes dimensões – política, econômica, cultural e religiosa.
Dentro de um cenário mundial de aumento dos movimentos de populações em escala global, esses emigrantes brasileiros e não-nacionais são parte dos fluxos massivos que continuam a se deslocar, sobretudo para o Norte, para os países ricos, onde os salários (diretos e indiretos) são em média mais altos e o sistema de proteção social mais efetivo. Salles (2018) destaca que para se compreender a emigração de brasileiros no século XXI deve-se atentar para
“[…] além dos casos clássicos como EUA, Canadá, Japão, América do Sul e Mercosul, até os chamados novos destinos da emigração brasileira recente (século XXI), especialmente Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e França, com a particularidade de uma migração mais qualificada que os demais fluxos anteriores e a chamada emigração feminina” (Salles, 2018, p. 6).
Conforme destacam Bógus e Baeninger (2018), os destinos desses brasileiros são muito mais variados se comparados com os das décadas precedentes. Os dados oficiais mais recentes sobre esses fluxos de saída, fornecidos pelo Ministério das Relações Exteriores (2016), apontam 3.105.922 brasileiros (em situação documentada) habitando no exterior em 2015. No entanto, para a população economicamente vulnerável, a imigração indocumentada, com alto risco de violência e morte, exposta aos empresários das fronteiras e ao trabalho mais explorado no país de destino, acaba sendo a única alternativa de fuga da atual crise brasileira. Nesse sentido, são ainda muito maiores – embora impossíveis de se mensurar – os números de brasileiros expostos a esses riscos e humilhações para tentar a saída do Brasil. Apenas considerando-se um dos principais destinos desses fluxos, os Estados Unidos, já é bastante elevada a incidência de detenções pelo crime de atravessar as fronteiras americanas de forma indocumentada, segundo reportagem da Folha de S.Paulo (Maisonnave, 2017).
Será uma tarefa importante entender o perfil dos fluxos de saída de brasileiros e não-nacionais do país e seus impactos no mercado de trabalho. Algumas pistas fornecidas no estudo de Bógus e Baeninger (2018), em conjunto com a análise do contexto de crise atual, nos levam a destacar os seguintes grupos sociais como representativos do potencial emigrante:
1) jovens recém-formados que encontram um mercado de trabalho bloqueado em relação à oferta de empregos, sobretudo para postos com bons salários e em regime estável (dados recentes mostram que cerca de um terço dos jovens brasileiros encontra-se desempregado);
2) jovens, do ensino médio e superior, que ainda estão no período de formação mas buscam saídas de estudo fora do país, com expectativas de permanência após a diplomação, caso consigam se inserir no mercado de trabalho e obtenham a regularização do visto;
3) pessoas com um perfil de baixa renda, já com experiência de emigração, que voltaram ao país – os chamados “retornados” – no período de dinamismo econômico e que avaliam a perspectiva de reemigrar;
4) pessoas que se expõem aos riscos de migrar em situação indocumentada ou que tentam a via da reunião familiar por meio de parentes que já moram fora do país;
5) componentes de famílias de classe média que sofreram um drástico rebaixamento de condições de vida no Brasil e que possuem um capital para migrar ou uma segunda cidadania de país estrangeiro;
6) brasileiros ou imigrantes residentes em regiões fronteiriças, que se utilizam da migração, mesmo a pendular, como forma de contrastar os condicionamentos da crise brasileira;
7) mulheres brasileiras que sofreram um rebaixamento das condições de vida e buscam emprego dentro das “cadeias globais de cuidado” (Ehrenreich e Hochschild, 2003) ou care;
8) imigrantes e refugiados que vivem no Brasil e decidem voltar ao país de origem ou tentar a sorte em um terceiro país;
9) futuros refugiados políticos brasileiros.
Trata-se, em todo caso, de um desenraizamento forçado, que comporta muitos custos, não apenas de caráter econômico, mas sobretudo psicológico. Para a maior parte dos brasileiros, o tornar-se estrangeiro não é uma escolha e não poderá evitar o que Abdelmalek Sayad descreve tão bem: os sofrimentos do emigrante-imigrante. Para o Brasil, a perda de homens e mulheres, muitos deles jovens, só reforça o seu subdesenvolvimento.
Patricia Villen Meirelles Alves é graduada em direito pela PUC-SP. Possui licence na área de filosofia (Université Paris 8, França). Fez mestrado em filosofia prática e relações humanas (Universidade Ca Foscari, Itália). Fez doutorado em sociologia pela Unicamp com um estudo sobre as migrações internacionais no Brasil contemporâneo e o trabalho imigrante. Fez pesquisa de pós-doutorado sobre o tema das migrações internacionais, com foco nos fluxos Sul-Sul para o Brasil, no Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Publicou o livro Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo.