IMAGEM: SÉRGIO LIMA/Poder360

 

Acesso à Justiça do Trabalho e cidadania

A trabalhadora, ao entrar na sala de audiência acompanhada por sua advogada, busca no Poder Judiciário aquilo que lhe foi ou ainda lhe é negado. Com sentimento de esperança, internamente, enxerga no Judiciário o poder capaz de determinar a reparação à violação de direitos humanos praticada em atividade empresarial [1].

No entanto, não imagina que pode passar pela mente de quem tem a função de julgar com imparcialidade e isenção que a trabalhadora está buscando algo que não lhe pertence; que muito provavelmente existe uma ganância em avançar sobre a invejada situação econômica da empresa. Parece uma situação surreal e absurda, impossível de acontecer em nossos tribunais, mas essas suposições foram expostas em artigo recentemente publicado nesta revista eletrônica. E isso sequer surpreende, pois externa o pensamento de uma parcela da magistratura, o que nos move a esclarecer e a informar as razões que levam trabalhadoras e trabalhadores a reivindicarem a tutela jurisdicional trabalhista, pelo direito baseado em evidências e fatos, posto que estes, ao contrário de meras convicções, são reais.

No ano de 2020, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho apresentou o ranking de assuntos mais recorrentes judicializados: aviso prévio, multa do FGTS, multa do artigo 477 da CLT (anotação na CTPS, comunicação da dispensa aos órgãos competentes, pagamento das verbas rescisórias no prazo legal), falta de pagamento das verbas rescisórias, férias proporcionais, horas extras, adicional de insalubridade, intervalos intrajornada etc. [2]:

Não há nenhuma pesquisa do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que aponte dados de expressividade de trabalhadores e trabalhadoras que reivindiquem algo que não lhes é devido. Pelo contrário, demonstra a relevância de atuação da Justiça do Trabalho para reparar lesões que se prolongam, muitas vezes, num longo vínculo laboral, porque não raras vezes a parte reclamante consegue reivindicar somente os últimos anos, com receio de perder o emprego, ou seja, quem sempre sai ganhando de alguma maneira é o violador de direitos que, até pela prescrição quinquenal e/ou bienal, tem o tempo a seu favor.

Trabalhadoras e trabalhadores, na esmagadora maioria das vezes, buscam algo que lhes pertence por direito e lhes foi sonegado. Não podemos admitir, sem contraponto, que se propague o sentimento de nadificação do valor da pessoa humana que emprega a sua força de trabalho às empresas, dedicando a maior parte do tempo de sua vida ao trabalho, sem receber ao menos a contraprestação econômica daquilo que lhe é devido. Ninguém ignora as condições e regimes de trabalho aos quais diversas empresas, especialmente de médio e grande porte, submetem trabalhadores e trabalhadoras, como também ninguém ignora a monstruosa sonegação de dívidas trabalhistas, proteladas muitas vezes por recursos incabíveis que, sobretudo após a decisão do STF sobre a forma de atualização das dívidas trabalhistas, passaram a fazer todo o sentido para os devedores. Pode-se dizer, sem receio de erro, que dever ao trabalhador atualmente é um lucrativo negócio.

Essa introdução foi importante para tratarmos do tema principal a ser discutido, qual seja, o julgamento do STF que decidiu que trabalhadoras e trabalhadores possuem o mesmo direito que os demais cidadãos de acesso pleno à Justiça, nos termos do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal. Pode soar estranha a necessidade de uma decisão da nossa Suprema Corte — dividida — para afirmar condição de cidadania à classe trabalhadora que busca direitos sonegados na Justiça do Trabalho, mas foi exatamente disso que tratou o julgamento.

Nesse ponto, é necessário questionar se o imenso número de reclamações trabalhistas em curso é decorrência mesmo de uma falha de caráter de trabalhadoras e trabalhadores que vêm buscar na Justiça "o que não lhes pertence" ou se decorre da sonegação de direitos básicos de natureza alimentar, como escancaram os números expostos no início deste texto.

Seria importante, como sugestão ao colendo TST, que, além de divulgar a análise de movimentação processual, relativa aos meses de janeiro a setembro deste ano, que destacou as "TOP 20 Litigantes" [3] do período, entre elas Petrobras, Banco do Brasil, Correios, Bradesco, Caixa Econômica, Telefônica, Santander, Itaú-Unibanco, Fundação Casa, Via Varejo, Claro, Oi, Estado de São Paulo, Estado do Rio de Janeiro, Vale, Estado do Rio Grande do Sul, Grupo Pão de Açúcar e Telemar, apresentasse quais as metas atingidas, no período, como a política judiciária no seu compromisso com a Agenda 2030 da ONU [4], para que as mesmas empresas não continuem violando direitos humanos em atividades empresariais.

O fato de um magistrado ou um tribunal enxergar nos pedidos de um trabalhador resultados que terão retorno econômico expressivo não retira o direito à gratuidade desse operário, porque não se pode confundir a situação violadora que resultou no direito econômico com a situação econômica pela qual passa a vida do trabalhador que muitas vezes não tem recurso para pagar as custas processuais. Como foi dito anteriormente, ainda assim a reivindicação de direitos é restringida pela lei. A lógica de teses excepcionais do tipo "se colar, colou" deve ser considerada pelo TST como um alerta de que é necessário um monitoramento sobre as revisões de sentença que negam a prestação da tutela jurisdicional, com teses de prescrição e subjetividade, por exemplo, do direito constitucional à igualdade salarial de trabalhadores no desempenho da mesma atribuição.

O que deveria indignar a sociedade, assim como a toda comunidade jurídica, é que chegamos ao ponto em que empresas sonegadoras de direitos básicos alimentares são vistas como vítimas; acordos judiciais que reduzem direitos são práticas vistas como melhor caminho de resolução das demandas trabalhistas por um "conciliar é legal". Enquanto isso, o suor e o sangue que escorre nos parques de indústrias são de trabalhadores e trabalhadoras em benefício das atividades empresariais. Isso, sim, é a normalização do errado!

Nunca a educação em direitos humanos foi tão importante dentro do Poder Judiciário. A pauta da Agenda 2030 da ONU grita porque, na falta de visão do contato com a realidade social, empoderam-se vozes a afirmar que trabalhadores são os verdadeiros culpados de terem seus direitos sonegados e lotarem a Justiça do Trabalho para reivindicar aquilo que lhes foi negado. E tome pechas à classe trabalhadora, até mesmo no Supremo Tribunal Federal.

A convivência solidária e empática se dá em contato com o mundo da vida, não em prejulgamentos ou em redes. Ela se estabelece instruindo bem um processo, escutando as partes e testemunhas, transcrevendo os principais elementos de prova em ata de audiência, exigindo documentos em poder exclusivo da empresa com aplicação dos efeitos legais quando da ocultação (artigo 400, inciso I, do CPC), realizando perícia técnica e ou contábil, quando for o caso, para apuração da verdade.

O jurisdicionado provoca o Judiciário para reivindicar aquilo que lhe foi ou ainda lhe é sonegado. Negar o acesso à gratuidade é retirar o direito do cidadão de participar da construção cotidiana do Estado democrático de Direito, em que deve imperar o valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana. Duas frases para concluir o artigo: a do advogado Aury Lopes Junior, que, representando a Abracrim no STF, afirmou que "quem alega não ter verba para investir na Justiça desconsidera o imenso custo da injustiça"; e a de Ruy Barbosa, que enfatizou: "É obrigação do cidadão pleitear seus direitos. Quem pleiteia seus direitos está ajudando a garantir o direito de todos".

Ser cidadão é o primeiro direito de um trabalhador!

 

[1] Leia-se: Decreto 9.571, de 21 de novembro de 2018 que estabelece as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9571.htm. Acessado em 01/11/2021.

[2] TST. Disponível em https://www.tst.jus.br/web/estatistica/jt/assuntos-mais-recorrentes. Acessado em 01/11/2021.

[3] https://www.tst.jus.br/documents/18640430/24361510/MP+2021.pdf/bb64b78e-a4f1-be10-318b-852a0c398472?t=1615569306077.

[4] http://www.agenda2030.com.br/.

 

Carmela Grüne é representante estadual do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) no Rio Grande do Sul.

Marcos Luiz Souza é vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos do IAB.

 

FONTE: REVISTA CONSULTOR JURÍDICO/CONJUR