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Fiscais de Bahia, Maranhão, Minas Gerais e Pará apontam dificuldades e tendências. E lembram dos 17 anos de Unaí

São Paulo – Com mais de 55 mil trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão (nas condições previstas pelo sempre visado Artigo 149 do Código Penal) em 25 anos, o perfil dessa prática vem se modificando aos poucos. Continuam as ocorrências em plantações, carvoarias e pastos, por exemplo, mas o trabalho escravo em áreas urbanas vem ganhando espaço, apontam auditores-fiscais.

Quatro deles – de Bahia, Maranhão, Minas Gerais e Pará – participaram de live ontem (27) à noite, apontando desafios, dificuldades e tendências. A mediação foi de André Roston, ex-chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae).

A atividade fez parte da Semana Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. Esta quinta-feira (28) marca os 17 anos da chacina de Unaí (MG), em que três fiscais e um motorista foram mortos a tiros. Debate virtual sobre o assunto e ato público serão realizados a partir das 14h30 com transmissão na página do Sinait, o sindicato dos auditores-fiscais.

Tempos sombrios

A auditora Ivone Beumecker, de Minas, se emociona ao lembrar. “Eu fui várias vezes com as famílias ao lugar onde eles foram assassinados. Foram tempos sombrios. Nossos colegas precisam de justiça”, afirmou. Ela disse esperar que “especialmente os senhores Antério e Norberto Mânica possam pagar em vida”.

Os dois irmãos foram condenados como mandantes do crime, mas o julgamento de Antério, ex-prefeito de Unaí e fazendeiro, foi anulado depois que Norberto assumiu a culpa. Ele recorre em liberdade, assim como os apontados como intermediários. Apenas os executores estão presos.

Resgate após 38 anos

Ivone citou a evolução das ações de combate ao trabalho escravo, a partir da criação dos grupos móveis de fiscalização. De 1995 a 1999, por exemplo, foram seis ações e 46 resgatados em Minas Gerais. De 2008 a 2012, 343 e 1.108, respectivamente e de 2013 a 2020, 385 e 2.124. Segundo ela, o estado responde por 11,25% do total nacional. “Essa humanidade tem rincões muito desumanos.”

Um caso de muita repercussão em 2020, lembrou, foi o de Madalena Gordiano, em Patos de Minas. Ela foi adotada (e escravizada) aos 8 anos e permaneceu nessa situação até os 46 anos, quando foi resgatada por auditores e pela Polícia Federal.

Trabalho doméstico

Há muitas “Madalenas” também na Bahia, afirmou a auditora Liane Durão de Carvalho, que coordena grupo específico no estado. Ela destaca histórias parecidas e tendência crescente de operações envolvendo trabalho doméstico. No ano passado, foram quatro, resgatando dois homens e duas mulheres. Uma delas “cuidava da casa em troca de roupas, remédios e alimento, nunca recebeu salário”.

Mesmo sem se sentir parte da família, conta Liane, a trabalhadora se sentia responsável pela casa. “Não tinha vida social, não tinha contato familiar, não tinha descanso. Ela vivia para aquela família, não tinha vida própria.” A auditora-fiscal destaca a dificuldade de evitar, algumas vezes, que os resgatados retornem à mesma situação. “Falta punir os escravocratas”, acrescentou.

Impunidade predomina

Paulo Lásaro de Carvalho Filho, do Maranhão, também apontou a impunidade como fator que dificulta o fim da prática. Além da necessidade de mais efetivo. De 2001 a 2010, o estado resgatou 2.325 trabalhadores, chegando a 445 apenas em 2005. Nos 10 anos seguinte, foram 531. A redução, segundo ele, se deve em parte aos resultados da fiscalização. Mas também à falta de auditores.

Na primeira década do século 21, diz o auditor, predominavam os resgates em atividade agropastoris, principalmente pecuária extensiva de corte, além de carvoarias e plantações de milho e soja. Havia certa concentração na chamada região tocantina, no sul do estado (Imperatriz e outros municípios), mas aos poucos a prática se espalhou. Além da dispersão, ele também observou aumento dos casos de trabalho escravo em áreas urbanas.

Como em fevereiro do ano passado, quando 16 trabalhadores vindos de Juazeiro (CE) foram resgatados em São Luís, para onde foram levados, em condições precárias, a fim de vender utensílios de porta em porta. As famílias ficavam devendo um “adiantamento”. Por isso, Paulo Lásaro defende ação articulada entre os vários órgãos públicos envolvidos. “O combate ao trabalho escravo não se esgota no resgate.” Depois, observa, é preciso garantir inserção do trabalhador em políticas públicas.

Liberdade não tem preço

Jomar Sousa Ferreira Lima, auditor do Pará, lembra que originalmente o trabalho escravo coincide com a questão da luta por terra. Havia incidência em pastos e carvoarias, várias vezes com menores. Apesar das ações, rapidamente essas atividades eram retomadas, muitas vezes com os mesmos trabalhadores.

As ocorrências se expandiam para garimpos e, mais recentemente, para a construção civil. O fiscal aponta ainda a incidência de trabalho escravo e infantil na cultura do açaí. Com pessoal e recursos insuficientes, o estado não tem grupo específico. “Um trabalhador resgatado justifica todo custo. Nada paga o preço da liberdade das pessoas.”

 

FONTE: REDE BRASIL ATUAL