FOTO: Evaristo Sá/AFP
Estudo mostra que setor patina há duas décadas; aeroportos são modelo para a atração dos investimentos privados
Sem dinheiro público à vista, o setor de infraestrutura no Brasil olha para mudanças regulatórias em estudo pelo governo e pelo Congresso como saída para atrair recursos privados e deixar para trás duas décadas de investimento insuficiente.
O exemplo dos aeroportos, cujas regras de concessão foram alteradas pelo governo federal em 2017, salta aos olhos. Naquele ano, 38% dos R$ 970 milhões aplicados na área eram privados, enquanto em 2018 isso cresceu para 77% de R$ 2,14 bilhões.
Os dados estão na “Carta da Infraestrutura”, publicação mensal que traz uma vez por ano o mapa geral dos investimentos da área no país.
“No ano que vem, ou vai ou racha”, resume o responsável pelo documento, Cláudio Frischtak. À frente da Inter.B Consultoria Internacional desde 1991, ele é considerado um dos maiores especialistas no campo no país.
O estudo mostra que em 2018 o país aplicou 1,82% do PIB (Produto Interno Bruto) em infra, quando o ideal para um crescimento sustentado seriam 4,15%. A expectativa é que a taxa oscile para 1,87% em 2019, dando sequência a uma série que começa em 2001 com média em torno de 2%.
A progressiva erosão da situação fiscal brasileira, evidenciada pelos sinais de “shutdown” em diversos níveis do governo, levou a uma queda expressiva na fatia dos investimentos públicos no setor.
Em 2010, governos aplicavam 1,26% do Produto Interno Bruto em infra, enquanto o setor privado investia 1,01%. Agora, em 2019, a estimativa é que empresas invistam 1,22% do PIB —já dinheiro público caiu para 0,65%.
“O cenário é de restrição fiscal. Por isso, temos um programa de desinvestimento [estatal] que é o maior do mundo, com previsão de investimentos de R$ 200 bilhões”, afirma a secretária de Fomento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura, Natália Marcassa.
“Apostar no setor privado não é ideologia, é pragmatismo. O que o governo deve fazer é avançar no arcabouço regulatório, e o presidente Jair Bolsonaro precisa parar de falar besteira”, diz Frischtak.
Ele enumera o que seriam as besteiras presidenciais, que afetam especificamente o investidor de infraestrutura.
“Toda a questão ambiental, como o caso recente da Amazônia, e de direitos humanos sensibiliza demais investidores de grandes fundos”, diz.
Ele também considera o governo contraditório no seu discurso. “Por um lado Bolsonaro (PSL) repete o que fazia o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e critica agências reguladoras, mas do outro há bolsões de racionalidade no governo que estão avançando”, completa, listando a pasta de Marcassa, liderada por Tarcísio Freitas, e ministérios como o da Economia e o de Minas e Energia.
Desde que o governo Michel Temer (MDB) lançou o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), o cenário da infraestrutura começou a mudar e ser visto como ponta de lança dos movimentos liberalizantes encarnados hoje no Ministério da Economia.
No caso dos aeroportos, o setor privado foi consultado, e os leilões, alterados.
Eles passaram a ser vendidos em blocos, agrupando no mesmo pacote ativos valorizados e outros nem tanto. Além disso, caiu a outorga mínima esperada pelo governo e tarifas foram flexibilizadas.
Resultado, sucesso nas vendas e forte participação estrangeira, que foram repetidas este ano em um leilão em março de 12 aeroportos.
A alemã Fraport foi uma dessas empresas atraídas. Seu plano de investimento prevê R$ 1,8 bilhão em Porto Alegre e R$ 1 bilhão em Fortaleza, os aeroportos cuja concessão levou em 2017 e que começou a administrar em 2018.
“No ano passado, aumentamos o tráfego nos aeroportos em 7%, para 14,9 milhões de passageiros. De janeiro a julho deste ano, já tivemos um crescimento de 5,3%”, disse a Fraport, em nota.
Sem dar detalhe, os alemães confirmam que continuarão nas próximas disputas.
Em 2020, o governo vai leiloar 22 aeroportos e espera investimento de R$ 4,99 bilhões. Em 2021, serão 19 pontos e R$ 5,28 bilhões a serem aplicados —esta última rodada incluirá joias da coroa da Infraero, como Congonhas (São Paulo) e Santos Dumont (Rio).
Os exemplos positivos também são encontrados nas concessões estaduais de estradas. A quarta etapa do programa do governo paulista, por exemplo, estima investimentos de R$ 14 bilhões.
A aprovação da Lei das Agências Reguladoras, em junho, é vista no mercado como um sinal de estabilidade jurídica, mas ainda há vários gargalos a serem atacados.
No saneamento básico, em nenhum momento desde 1970 o estoque de capitais públicos e privados investidos foi 1,5% de PIB maior do que a média até aqui, de 4,5%.
O marco regulatório do saneamento, ora em discussão no Congresso, pode destravar isso. Neste ano, a Inter.B estima que apenas 0,20% do PIB será aplicado no campo, o mesmo número do começo do século.
A depender das regras aprovadas, pode haver privatização de grandes empresas, como a paulista Sabesp.
O governo João Doria (PSDB-SP) já disse que considera o negócio, que pode render R$ 20 bilhões. Mas há resistências, não só no estado como em outras unidades da federação, diz o consultor.
Outro setor que pode ter, na avaliação da “Carta”, um grande avanço é o ferroviário. Tramita no Senado um projeto que prevê a possibilidade de construção de novos trilhos e utilização de linhas desativadas pela iniciativa privada.
Isso poderia aumentar a capilaridade e acabar com cenas como as vistas em Sete Lagoas (MG), onde dormentes dividem espaço com lixo, grama e carcaças de trens federais. “Pode haver um surto de investimentos”, sugere a “Carta”, afetando até 8.000 km de linhas de carga e passageiros.
“Se o Estado tivesse capacidade de investir, ótimo. Mas não tem, então precisamos melhorar o lado privado”, afirma o presidente da ANPTrilhos (Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos”, Joubert Flores, que elogia a discussão do marco regulatório pela ANTT, a agência reguladora dos transportes terrestres.
Ele diz que há uma visão errada no país de que ou se usa trem ou veículos sobre rodas.
“No mundo inteiro os modais convivem. São Paulo, por exemplo, teria tudo para dar certo”, afirma, citando as possibilidades do chamado trem intercidades, um projeto paulista ainda a ser licitado de R$ 5,8 bilhões que prevê ligar a capital a Americana, passando por Campinas.
Hoje, o Brasil só tem duas linhas intercidades, ambas operadas pela Vale dentro de um esquema no qual fazem viagens eventuais em trilhos que escoam vagões de minérios (Minas-Vitória e Carajás). Os 1.100 km de rede usados por passageiros são basicamente de metrôs e trens urbanos.
A China tem, por exemplo, 12.000 km só de linhas de trem-bala, e o metrô de Xangai é o maior do mundo, com 676 km.
O Brasil tem 15% de seu transporte de carga feito sobre trilhos, 65% em rodovias e 20% por vias aquáticas e outras. Nos EUA, 43% vão de trem, 32% sobre pneus, e 25%, por outros meios.
Para 2019, a Inter.B prevê uma expansão de 35,2% no investimento em portos, que deverá ser 83% privado. “Isso decorre de regras melhores, como a lei de 2012 que abriu o uso dos portos”, afirma Marcassa. Haverá uma redução em hidrovias e mobilidade urbana tende a ficar onde está.
O estoque de capitais investidos, contudo, está em um dos menores níveis da série histórica iniciada em 1973, compilada por Frischtak e João Mourão em estudo para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: 36,2%.
O topo foi em 1982, com 58,2%, pois ali estavam frutificando os grandes projetos da ditadura nos anos 1970, como a hidrelétrica de Itaipu. Desde 1993, a queda foi praticamente contínua, com soluços.
Outro fator que ameaça o setor de infra é, obviamente, uma crise mundial decorrente da guerra comercial entre EUA e China, além do desempenho claudicante do PIB brasileiro após os anos de recessão de 2015-16.
Numa conta que considera conservadora, o consultor crê que seria possível atingir os 4,15% de investimentos para modernização do setor em 2023, considerando aí um taxa de crescimento de 0,5% anual a partir de 2020.
Para tanto, contudo, o modelo exige um país sem recessão e crescendo a pelo menos 2% do PIB —a taxa anualizada está em torno de 1% agora.
Segundo a conta, seriam necessárias até duas décadas com aplicações estáveis em pelo menos 4,15% para completar a atualização da infraestrutura brasileira.
Ilusório? “Não. O Chile investiu 5,1% de 2008 a 2011, a Índia pôs 6% de 2013 a 2017. E houve extravagâncias na Ásia”, diz, citando os 15,6% aplicados pela Tailândia em 2009.
GOVERNO VÊ MARCO LEGAL FORTALECIDO E PREVÊ INVESTIMENTOS
O governo federal concorda com a avaliação de que apenas o setor privado irá alavancar novos investimentos em infraestrutura, mas vê os entraves regulatórios como algo que logo estará no passado.
“O marco legal da infraestrutura está consolidado”, avalia a secretária Natália Marcassa (Fomento e Parcerias). Sua pasta, a da Infraestrutura, está oferecendo ao mercado uma carteira de R$ 200 bilhões em projetos até 2022.
“Só neste ano, já vendemos 27 ativos e obtivemos R$ 7 bilhões em outorgas. Mais R$ 7 bilhões virão em investimento”, diz a secretária.
Ela afirma que a mudança de regras nesse setor, operada pelo governo Temer, está espraiada por outras áreas. “Já funciona nos portos e esperamos a migração para as ferrovias”, diz, citando o projeto em análise no Senado.
Para ela, a prioridade do governo é estabelecer cronograma e matrizes de risco claras. Ela considera as agências reguladoras como algo central no Brasil porque os projetos não são perfeitos. “Se estivesse tudo no contrato, não precisaríamos delas”, diz.
Em rodovias, ela cita a ação da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), que mudou a orientação de concessões e só permite aumento de pedágios e tarifas após a obra ser totalmente acabada pela concessionária.
Marcassa confirma que, devido à crise fiscal, o governo não irá fazer investimento novo no setor no ano que vem. Haverá 29 obras prioritárias. “Vamos completá-las”, afirma.
Com cerca de R$ 6,5 bilhões destinados a obras em 2020, a Infraestrutura precisou fazer escolhas. “Isso é um terço do que tínhamos em 2014. Só modernização de rodovias já custaria R$ 9 bilhões.”
Com isso, o término das obras da BR-163 (que liga o Pará ao Rio Grande do Sul) e na BR-381 (a “rodovia da morte” em Minas) ganharam preferência, assim como as pontes sobre os rios Madeira (RO-AC) e Guaíba (RS).
Fonte: Folha de S. Paulo