Artigo publicado em O Globo, em 11 de março de 2022

Durante a pandemia, sem fazer alarde, a Transpetro vendeu quase 20 navios.

A bandeira brasileira ficou reduzida a apenas 25 embarcações na subsidiária da Petrobras. Em contraste, a frota afretada pela holding em outros países segue forte e superou uma centena de navios de bandeiras diversas no ano passado, entre afretamentos por tempo e por viagem.

Precisamos estar atentos, pois distorcer o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem (BR do Mar) para reduzir a frota em bandeira brasileira — transferindo os navios para outros países para depois operá-los, de forma direta ou cruzada, buscando possíveis brechas na legislação — cria um forte cheiro de evasão fiscal.

Na atividade marítima, é usual que ocorra o pagamento de uma comissão àqueles que viabilizam a contratação de embarcações. É necessário recordar que em algumas ocasiões, ao longo dos quase 70 anos da Petrobras, houve episódios pontuais que demonstram a eficiência da taxa de brokerage em estimular o afretamento internacional de navios entre executivos do setor marítimo. No seio da empresa, não é difícil identificar uma corrente gerencial que defende o afretamento de navios estrangeiros sem limites. Os contratos costumam ter valores significativos e até mesmo pequenos percentuais desses contratos, pagos como comissão, podem alcançar milhões de dólares. E, antes que se aponte a condição de estatal como motivo de tais episódios, é recomendável observar que a iniciativa privada não é isenta de situações semelhantes.

Antes mesmo do fim da tramitação do programa do governo de estímulo à cabotagem no Congresso, o sistema Petrobras já vinha estudando as possibilidades de utilizá-lo para se desfazer de parte da frota em bandeira brasileira e operada pela sua subsidiária — de forma a incrementar o já elevado percentual de navios estrangeiros afretados em relação à frota nacional. A construção naval realizada em estaleiros brasileiros na década passada foi determinante para que o país chegasse a 2022 contando ainda com frota nacional para transporte de petróleo bruto, gás de cozinha e combustíveis, sem depender exclusivamente de embarcações de outros países. O Programa de Expansão e Modernização da Frota da Transpetro (Promef) aconteceu entre os anos de 2009 e 2019.

Quanto ao futuro da frota nacional do sistema Petrobras, dos corredores da empresa e bastidores de reuniões virtuais chegam notícias sobre esforços para concretizar a venda de até dez navios tipo Suezmax da Transpetro, com capacidade para transportar um milhão de barris de petróleo cada um. A Petrobras parece ter pressa. Possivelmente, por avaliar que a proximidade do processo eleitoral no Brasil poderá dificultar a venda de ativos.

As possiblidades relacionadas por técnicos da Petrobras que denunciaram o fato às entidades sindicais incluiriam a venda de quase metade dos navios da frota atual à subsidiária da Transpetro na Holanda, para posterior contratação dos navios pela Petrobras em outras bandeiras ou mesmo a venda direta para armadores europeus, que ofereceriam navios em outras bandeiras para afretamento pela Petrobras. Os primeiros três navios poderiam ser vendidos já em março ou abril. No entanto, até aqui, a operação não foi pautada pelo Conselho de Administração da empresa, o que suscita dúvidas sobre a transparência do processo pretendido.

A possível distorção dos objetivos do BR do Mar nos leva a crer que o programa será usado para extinguir o que resta de Marinha Mercante genuinamente nacional.

Faz aumentar tal sentimento o veto presidencial que busca eliminar a proteção ao emprego de dois terços de marítimos brasileiros na Lei 14.301/22. Ainda há oportunidade de o Congresso corrigir os equívocos do governo, derrubando os vetos do presidente Bolsonaro, para manter o texto que foi aprovado pelos parlamentares.

 

Carlos Müller
Presidente do Sindmar e da Conttmaf