Luta sindical é responsável por marítimos brasileiros terem alcançado patamar muito acima da MLC
A Convenção do Trabalho Marítimo (MLC 2006) se propõe efetivamente a combater condições de trabalho extremamente injustas, degradantes e até de exploração a que muitos armadores submetem tripulantes de países de baixo custo em navios de bandeira de conveniência. É uma prática criminosa que busca obter vantagem competitiva indevida na oferta de serviços de transporte marítimo num ambiente internacional globalizado e de difícil fiscalização.
Há que se ter cuidado, porém, com algumas afirmações divulgadas na mídia sobre o trabalho no setor marítimo no Brasil. Ao contrário do que sugerem reportagens repercutidas recentemente, a ratificação da MLC 2006 não terá o condão de trazer mais segurança nas relações de trabalho dos marítimos brasileiros ou de proporcionar qualquer avanço nas condições laborais atualmente praticadas em águas nacionais.
A MLC 2006, via de regra, não oferece novidades para marítimos que já trabalham em boas condições, protegidos por leis trabalhistas nacionais bem formuladas e amparados por acordos coletivos negociados de forma justa com quem os emprega.
Podemos citar alguns exemplos práticos. O limite de horas trabalhadas previsto na MLC pode chegar a 14 horas num período de 24 horas e a 72 horas num período de 7 dias. Este é um patamar absurdamente alto, longe de possibilitar a realização do nosso ofício em condições equilibradas. A legislação aplicada a quem trabalha em terra – tanto no Brasil quanto em outros países que não permitem injusta exploração da mão de obra – possui garantias mínimas que são muito mais favoráveis ao trabalhador.
Nos navios – é importante lembrar – todos os dias são dias úteis. A embarcação não deixa de operar porque chegou o fim de semana ou o feriado. O excesso de trabalho a bordo sem possibilidade de adequado repouso e recuperação vem sendo apontado em pesquisas como causa do aumento nos casos de fadiga, ansiedade, depressão e até mesmo suicídio entre marítimos.
A concessão de folga remunerada em terra por período igual ao passado embarcado, por outro lado, tem se mostrado essencial para que o trabalhador consiga se manter mentalmente saudável e livre de fadiga. Os marítimos brasileiros são exemplo de que isso é possível. As folgas remuneradas garantidas pela MLC 2006, no entanto, são de apenas 2,5 dias por mês trabalhado, ou seja, totalizam 30 dias de folga remunerada em um ano de trabalho a bordo. Uma relação tão baixa entre o trabalho no mar e as necessárias folgas remuneradas em terra apenas confirma que a MLC, por mais bem-vinda que tenha sido, nos traz um alcance relativamente restrito: ela busca, de fato, proibir práticas desumanas ainda existentes em poucas bandeiras e regiões do planeta, mas não consegue ir muito além disso.
Visando evitar confusões que possam ser suscitadas sobre a possibilidade de concessão de férias e folgas pelos armadores, não é demais mencionar que os termos “leave” e “congé”, em inglês e francês, respectivamente, as línguas oficiais da OIT e de sua Convenção, se traduzem literalmente por “folga” ou “licença” de qualquer sorte, inclusive repouso remunerado ou férias.
Não consta da MLC 2006 qualquer dispositivo que obrigue o armador a oferecer regimes de embarque que favoreçam um adequado convívio social e familiar, como é o caso do regime 1×1, aplicado aos marítimos brasileiros que trabalham em águas nacionais. Tampouco há exigência de que o período de folga em terra – caso ultrapasse 30 dias por ano – seja remunerado. Na lei brasileira, é importante que se ressalte, também não há, nem nunca houve, tal previsão. Registramos isso para deixar evidente que não é por obrigação legal, imposta às empresas, que existe um regime de trabalho marítimo mais justo em águas brasileiras.
O regime de embarque dos nossos marítimos é resultado da luta coletiva de uma organização sindical que, historicamente, soube valorizar o trabalho de seus representados, exigindo dos armadores justa retribuição, que resta registrada em centenas de acordos coletivos de trabalho. É verdade, também, que a existência de sindicalistas marítimos que atuam de forma séria e honesta, colocando em primeiro lugar os interesses coletivos da categoria que representam, foi e continua sendo fator crucial para as conquistas obtidas pelos marítimos brasileiros.
Apesar dos senões apresentados acima, é justo destacar o que a Convenção trouxe de positivo. Os princípios de trabalho decente que nortearam a elaboração da MLC 2006, e que foram claramente registrados em seus artigos, incluem: a abolição do trabalho infantil, o fim do trabalho forçado ou compulsório a bordo e a eliminação da discriminação relacionada ao emprego e à ocupação, bem como a liberdade de associação dos marítimos e o efetivo reconhecimento do direito de negociar coletivamente.
É importante, ainda, destacar que a MLC não é uma consolidação definitiva, fechada em si mesma. Pelo contrário, sua revisão periódica está prevista e vem ocorrendo de forma regular a cada dois anos. Como a Convenção do Trabalho Marítimo estabeleceu o mínimo aceitável para que não se configure a escravidão no mar, seu texto necessita de constante aperfeiçoamento. Embora em muitos países a MLC não ofereça vantagem alguma para os marítimos, ela representa um marco extraordinário de melhoria diante das baixas práticas laborais existentes notadamente, mas não apenas, em águas asiáticas.
No século passado, o Brasil ratificou a maior parte das convenções marítimas da OIT, que foram revisadas e consolidadas na MLC 2006. Nos tempos atuais, para manter a segurança jurídica, tornou-se necessário substituir as antigas convenções que estão sendo canceladas na OIT pelo texto consolidado e expandido. Esse é o real motivo pelo qual nosso país precisou ratificar a MLC. Todavia, a ratificação da Convenção pelo Brasil de forma nenhuma pode ser confundida, como sugerem alguns desavisados ou mal-intencionados, com obrigação em praticar as condições mínimas que a MLC 2006 estabelece.
Logo em seu preâmbulo, a Convenção não deixa dúvidas sobre esta questão, ao registrar que a adoção de uma convenção ou recomendação pela conferência da OIT, ou a sua ratificação por um Estado-membro, em nenhum caso deverá ser motivo para afetar qualquer lei, garantia, costume ou acordo que garanta condições mais favoráveis para os trabalhadores. Mesmo assim, o que de fato poderá garantir aos oficiais e aos eletricistas brasileiros continuarem trabalhando em boas condições e recebendo justa remuneração em suas próprias águas nacionais será, sem sombra de dúvidas, como sempre foi, a disposição de lutar coletivamente para alcançar conquistas relevantes, organizados no Sindmar.
Juntos somos mais fortes!
Carlos Müller
Presidente do Sindmar
Diretor de Educação e Comunicação Sindical da Conttmaf