A falta de investimentos governamentais e de políticas públicas voltadas à gestão pesqueira podem fazer com o que o Brasil perca o direito de explorar um de seus mais importantes recursos pesqueiros: os atuns. Isso se deve ao descumprimento das obrigações da Comissão Internacional para a Conservação do Atum do Atlântico (ICCAT), responsável por promover a pesca sustentável destes recursos.
Essa punição poderá causar enormes prejuízos econômicos e sociais para o país. Como país signatário da ICCAT desde sua criação em 1966, o Brasil é obrigado a aportar regularmente dados nacionais sobre essas pescarias. Entretanto, nos últimos 5 anos, essas obrigações têm sido sistematicamente descumpridas.
Como uma forma de protesto, sem dados e sem condições de cumprir sua função, o Subcomitê Científico de Atuns anunciou recentemente a paralisação de suas atividades. Infelizmente, este não é um fato isolado, mas o reflexo do contínuo enfraquecimento da política pesqueira brasileira na última década.
Desde 2008, não há um programa de monitoramento da produção pesqueira em escala nacional e as informações existentes não estão disponíveis para a sociedade, nem mesmo a lista de embarcações com autorizações de pesca. Por isso, ninguém sabe quanto se pesca e nem quem pesca no Brasil. A situação é gravíssima.
Além de estar na contramão dos acordos internacionais, o Brasil está comprometendo a sustentabilidade das pescarias, já que elas dependem da exploração direta de recursos naturais renováveis. Para que a pesca extrativa seja economicamente viável no tempo, é necessário conhecer o tamanho das populações silvestres exploradas e ser capaz de calcular quanto pode ser retirado sem ultrapassar seus limites biológicos.
Em países onde a pesca é bem manejada, como Estados Unidos, Chile e Austrália, todas as essas informações são continuamente coletadas, analisadas e utilizadas na gestão. Mas por que será que no Brasil não é assim? Em geral culpamos a instabilidade ou falta de vontade política. Mas costumamos esquecer um ponto importante: a fragilidade do nosso marco legal.
A pesca no Brasil é regulamentada pela lei 11959 de 2009 (Lei da Pesca). Apesar de trazer alguns avanços, ela é bastante frágil na hora de estabelecer as obrigações do governo, como a de coletar dados pesqueiros. No seu artigo 27, parágrafo 2º, ela diz apenas que o Poder Executivo está "autorizado" a criar um sistema nacional de informações sobre a pesca, mas isso não é obrigatório.
Por causa disso, a coleta de dados tem sido regulamentada por normas infralegais, como portarias ou instruções normativas, assinadas pelos ministros. Essas normas são frágeis por dois motivos. Em primeiro lugar, elas são feitas pelo próprio Poder Executivo e por isso são muito brandas na hora de se impor obrigações. Seus artigos frequentemente dizem o que o governo pode fazer e não o que ele deve fazer, como e quando.
O segundo problema é que, em situações de pressão, elas podem ser revogadas ou proteladas pelos próprios ministros. Brasil vai na contramão dos acordos internacionais. Ninguém sabe quanto se pesca e nem quem pesca no país Um exemplo é a Instrução Normativa SEAP/MMA nº 1 de 2006 que estabelece a obrigatoriedade de embarcar técnicos para coletar dados das pescarias no mar - os "observadores de bordo".
Em 2011, essa norma deixou de ser cumprida pelo governo e a informação não tem sido gerada desde então. Outro exemplo são os Comitês Permanentes de Gestão, que são os espaços de discussão entre governo e sociedade. A criação desses fóruns está prevista em portarias interministeriais desde 2009, mas não existe uma data limite para a sua instalação, nem um número mínimo obrigatório de reuniões anuais.
Por isso, eles encontram-se suspensos por tempo indeterminado. Por último, temos o mistério do desaparecimento de R$ 12 milhões para financiamento de pesquisa pesqueira. O recurso havia sido disponibilizado pelo governo em 2015, por meio da Chamada MCTI/MPA/CNPq 22/2015, mas nunca foi liberado. Em nenhum desses exemplos, os órgãos foram responsabilizados pelos prejuízos causados. Fica claro que a solução do problema passa obrigatoriamente por um ajuste na Lei da Pesca.
O Poder Executivo precisa ser obrigado a produzir e disponibilizar regularmente informações do que é pescado, quanto, como, quando, onde e por quem. Esses dados precisam ser de fato utilizados para subsidiar a política pesqueira. Portanto, a lei deve incluir a obrigatoriedade de financiamento de ciência aplicada, ou até mesmo a criação de um instituto de pesquisa pesqueira. Sem isso não é possível determinar os limites sustentáveis de captura e, consequentemente, os rendimentos da pesca.
Para manter cada pescaria dentro dos seus limites de captura, devem ser elaborados planos de gestão onde se definem as estratégias a serem adotadas. Esses planos devem sempre ser discutidos democraticamente com a sociedade, em espaços especialmente criados para isso. Depois de publicados, devem ser seguidos, monitorados e ajustados constantemente. Esse processo garante, além da sustentabilidade, a base científica e a legitimidade da gestão pesqueira.
Finalmente, e muito importante, a legislação tem que dizer explicitamente que órgão é responsável por garantir que todos os recursos pesqueiros estejam sendo explorados dentro dos seus limites sustentáveis de captura. Pode parecer pouca coisa, mas foi a definição clara desse objetivo que fez com que a lei da pesca dos Estados Unidos ("Magnuson Stevens Act") começasse a funcionar de fato em 2007.
Hoje já é possível observar a recuperação dos principais estoques pesqueiros desse país. Esperamos que a situação constrangedora do Brasil junto à ICCAT seja revertida o quanto antes, mas que também seja um alerta para a necessidade de aprimorar a Lei da Pesca e definir obrigações para o Poder Executivo na gestão dos recursos pesqueiros. Só com um marco legal adequado será possível evitar a sobrepesca e os prejuízos socioeconômicos incalculáveis para a sociedade brasileira.
Mônica Brick Peres, diretora geral da Oceana no Brasil, é formada em Biologia Marinha, com mestrado e doutorado em Oceanografia Biológica.
FONTE:VALOR ECONÔMICO