A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Aéreos, na Pesca e nos Portos – CONTTMAF, a Federação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Afins – FNTTAA e o SINDMAR desligaram-se da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (International Transport Workers’ Federation – ITF). O motivo foi a rejeição ao tipo abjeto de sindicalismo que a cúpula da ITF passou a desenvolver, nos últimos tempos, no setor marítimo. Responsável por criar acordos sobre as condições de trabalho dos marítimos com os armadores e as agências internacionais, a entidade que deveria representar mundialmente os interesses legítimos dos marítimos e portuários escolheu trilhar o caminho dos ganhos fáceis, optando por práticas condenáveis, traindo seus representados e sua própria história de luta.

Sediada em Londres, a ITF reúne cerca de 665 sindicatos de 147 países, representando cerca de 18,5 milhões de trabalhadores em transportes. Desde sua fundação, no fim do século XIX, ela tem como missão garantir que seus representados ao redor do globo, entre eles os marítimos, trabalhem em condições dignas e de forma segura. Porém, ao desenvolver um perfil incompatível com os ideais – de independência, honestidade e defesa da classe trabalhadora – que norteiam o sindicalismo marítimo do Brasil desde o seu surgimento, a ITF não deixou alternativa às entidades sindicais brasileiras a não ser a desfiliação.

Devido ao fenômeno das bandeiras de conveniência, estima-se que pelo menos 80% de todos os sindicatos de marítimos do mundo não vivam mais em função dos seus trabalhadores nacionais. Este, porém, não é o caso do SINDMAR, da FNTTAA e da CONTTMAF, entidades que defendem com ímpeto e força a garantia do emprego de marítimos brasileiros em nossas águas.

Durante o congresso da ITF em outubro do ano passado, em Singapura, o presidente da CONTTMAF e do SINDMAR Severino Almeida Filho expôs sua preocupação quanto à crescente flexibilidade do conceito de cabotagem para implementação da política a ser seguida pela ITF na defesa dos marítimos nacionais em seu mar territorial, posição compartilhada pelo Presidente da FNTTAA, Ricardo Ponzi. “A clara ingerência da entidade em assuntos internos da nossa região tornou impossível uma convivência construtiva, voltada para os interesses legítimos dos trabalhadores que representamos. A ITF, sem dúvida, perdeu o rumo e ultrapassou limites.”, afirmou Ponzi.

Severino relata que a saída da ITF foi um momento doloroso, mas necessário. “Não nos interessa fazer parte de uma federação da qual tenhamos de nos defender. Respeitamos a história da ITF e toda a contribuição que ela deu ao setor marítimo ao longo de mais de um século. Infelizmente, ela foi subjugada por interesses financeiros e suas atividades hoje se tornaram muito mais de negócios que de sindicalismo. Atualmente, a direção da ITF – particularmente no setor marítimo, sob orientação de seu secretário geral Stephen Cotton – trabalha para sindicatos que sustentam a si próprios, mas não demonstram proteger prioritariamente os empregos dos seus nacionais”, afirma o Presidente da CONTTMAF.

A visão das entidades sindicais marítimas brasileiras é de que a política de repartir recursos oriundos tanto de marítimos quanto de armadores, na obtenção de Acordos Coletivos de Trabalho entre o sindicato da tripulação (labour supply country) e o sindicato representativo do marítimo do país onde o armador tem sua origem (beneficial ownership country), demonstrou ser um fracasso e um perigo. Fracasso porque gera facilidades para que marítimos de países baixo custo ocupem os postos de trabalho na atividade da navegação internacional. E perigo por estimular a flexibilidade das regras sobre a utilização de marítimos na cabotagem, a fim de obter Acordos Coletivos aceitáveis entre sindicatos que tenham interesse no negócio, mesmo que isso leve ao desemprego de nacionais. “Você pode definir essa como uma política em que os sindicatos envolvidos estão muito bem, obrigado, mas os marítimos que não são de baixo custo são excluídos do cenário”, resume Severino.

A origem

A atividade mercante nas Marinhas do mundo precedeu a militar. Antes que existissem navios de guerra, as embarcações usadas no transporte de mercadorias entre as metrópoles e as colônias eram armadas para o caso de precisarem se defender de um ataque pelo caminho. Ao longo dos séculos, os donos dos navios mercantes – chamados até hoje, por esse motivo, de armadores – de certo modo mantiveram suas práticas colonialistas e extrativistas que perduram até os dias atuais. É natural, portanto, que a ITF tenha nascido, não da inspiração de alguém, mas da luta dos trabalhadores contra a exploração pelos patrões.

Em 1896, na segunda etapa da Revolução Industrial, chegaram aos portos da Europa os guindastes a vapor. Até então, a mercadoria que vinha nos navios era transportada em sacos, carregados nas costas pelos estivadores, o que demandava uma grande quantidade de trabalhadores para aliviar um navio. As demissões em massa causadas pela automação, aliadas a outras questões, como o não pagamento de horas extras, levaram os trabalhadores do porto de Rotterdam, na Holanda, à deflagração de uma greve.

Já naquele tempo, os empregadores procuravam fura-greves para burlar o movimento dos grevistas e, mesmo com os trabalhadores paralisados e fora do cais, descarregar os navios. Os trabalhadores portuários holandeses, então, viajaram para o Reino Unido e se reuniram com o sindicato de marítimos daquele país. Na época, os britânicos tinham uma das maiores, senão a maior frota mercante do mundo, e em uma assembleia conjunta, os trabalhadores dos dois países acordaram não movimentar qualquer carga enquanto não houvesse negociação dos empregadores com os portuários em Rotterdam. Com isso, a greve acabou por paralisar o porto todo e foi um sucesso.

Naquele mesmo ano, nascia, no Reino Unido a International Federation of Ship, Dock and River Workers, fundada por Joseph Havelock Wilson, da National Sailors’ and Firemen’s Union – NSFU, em associação com Ben Tillett e Tom Mann, os líderes da Greve das Docas de Londres, de 1889, e Charles Lindley, sindicalista marítimo sueco. O nome atual foi adotado em 1898, quando a entidade passou a incluir trabalhadores de transporte em indústrias não marítimas.

O primeiro congresso da ITF, em Londres, ocorreu como consequência lógica de uma luta de verdadeiros trabalhadores, representados em entidades sindicais e com características internacionais. A solidariedade entre Holanda e Reino Unido se expandiu e a ITF foi mantendo essa missão, incorporando outros países e setores. O último setor a ser incluído na constituição da entidade foi o da aviação, em 1939. O Brasil chegou à ITF em 1956, com 192.000 membros da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres, e a CONTTMAF se filiou em 1975.

Bandeiras de conveniência, o ovo de Colombo da armação

No setor marítimo, a principal luta da ITF, historicamente, foi o combate aos males causados aos trabalhadores pelas bandeiras de conveniência – BDC ou FOC (sigla em inglês). A prática de operar navios sob bandeiras de outros países existe há vários séculos e, em suas origens, foi motivada principalmente pelo desejo dos armadores de obter acesso a determinados mercados ou de se protegerem sob os poderes marítimos da época. Navios mercantes ingleses, por exemplo, usavam a bandeira espanhola no comércio das Índias Ocidentais durante o século XVI, quando a Espanha detinha o monopólio desta atividade. No Mediterrâneo Oriental, nos séculos XVIII e XIX, as embarcações estrangeiras arvoravam com frequência bandeiras francesas, turcas e russas, as nacionalidades das Marinhas que dominavam essa parte do mar.

Durante a 1ª Guerra Mundial, os países envolvidos no conflito perceberam que se sua armada carregasse outra bandeira, isso poderia livrá-los de um bombardeio. O que serviu na guerra – pensaram os armadores – também poderia ser vantajoso em tempos de paz. Então, por que não persuadir governos de pouca expressividade a cederem suas bandeiras para que as empresas marítimas pudessem participar do trade obtendo os maiores lucros e sem grandes preocupações?

O uso moderno de bandeiras de conveniência começou na década de 1920, quando várias companhias norte-americanas transferiram seus navios para registros panamenhos e hondurenhos. Algumas tentavam evitar os altos custos de cumprir a nova legislação social nos EUA; outras buscavam certos tipos de flexibilidade operacional, como a liberdade de servir álcool em navios de passageiros durante o período de vigência da Lei Seca. Em pouco tempo, alguns armadores europeus também começaram a se valer de bandeiras de conveniência para participarem de negociações clandestinas e outras atividades ilegais.

A prática atual de se registrar navios em bandeira estrangeira envolve a transferência de embarcações para fora dos países marítimos tradicionais. Só que os armadores não buscam proteção contra forças hostis nem privilégios comerciais para suas embarcações. O que almejam é ter custos menores e flexibilidade operacional, vantagens que não estão disponíveis sob as bandeiras com maiores exigências sociais. Uma bandeira de conveniência funciona, portanto, como um serviço vendido a armadores estrangeiros que desejam fugir das consequências – fiscais e outras – do registro sob suas próprias bandeiras.

Até o fim da década de 1940, apenas dois países ofereciam o registro BDC: Panamá e Honduras. A Libéria juntou-se a eles em 1949 e logo se tornou a principal bandeira de conveniência. Atualmente, a ITF contabiliza 37 delas. De Antígua e Barbuda a Vanuatu, passando por Myanmar e Tonga, os países das bandeiras de conveniência de hoje não são potências marítimas, mas nações menos desenvolvidas, que oferecem os registros simplesmente como um meio de gerar renda adicional. Essas taxas, por mais insignificantes que possam ser para navios individuais, em moeda forte geram somas consideráveis de receita no PIB desses países.

Existem vários incentivos para os armadores registrarem seus navios em uma bandeira de conveniência, a começar por se liberarem dos altos impostos a que estariam sujeitos se operassem sob suas bandeiras nacionais. O registro BDC também livra os armadores da obrigação de terem seus navios construídos ou reparados em seus estaleiros nacionais, geralmente a custos elevados. Além disso, permite que se empreguem tripulantes de outras nacionalidades, com qualquer nível de salários e benefícios.

O processo de globalização da economia contribuiu para a proliferação das bandeiras de conveniência. Fora da vista de fiscais e reguladores, em um navio de bandeira de conveniência, o que acontece no mar quase sempre morre no mar. Isso faz com que armadores inescrupulosos se sintam desimpedidos para cometer abusos contra os direitos dos trabalhadores marítimos sem medo de serem punidos. Ao registrar seus navios em paraísos fiscais, onde podem usufruir de taxas de registro baratas, regulamentação mínima e baixa tributação, os armadores se veem livres para operar em condições substandard, contratando mão de obra de baixo custo do mercado global e mantendo condições precárias de trabalho a bordo. Não raro, as tripulações dessas embarcações navegam com escassez de alimentação e de água potável, além de desenvolverem fadiga e estresse devido às longas jornadas sem o descanso adequado.

A campanha da ITF contra os registros de conveniência

Inicialmente, as bandeiras de conveniência significavam sinal verde para todo tipo de corrupção e exploração laboral. Não havia inspeções ou regulações a cumprir e questões mínimas de segurança não eram respeitadas. O tripulante podia, por exemplo, trabalhar 20 horas por dia e, caso sofresse um acidente, era apenas descartado. Se ficasse seis meses sem salário, também podia ser simplesmente demitido e nada acontecia. No congresso da ITF em Oslo, em 1948, os sindicatos marítimos se mostraram temerosos com a transferência de navios para registros de bandeiras de conveniência, prevendo que isso pudesse, eventualmente, causar a perda de todos os postos de emprego dos tripulantes nacionais. A ITF decidiu, então, lançar uma campanha contra as bandeiras de conveniência, provavelmente uma das mais antigas do movimento sindical, que continua até os dias de hoje.

O objetivo da campanha era honesto do ponto de vista sindical: acabar com a política que estava tirando os empregos dos marítimos nacionais. A partir daí a ITF lançou uma série de ações. A primeira de maior vulto, em 1952, ganhou o nome de PanHon-LibCo, sigla representando Panamá, Honduras, Libéria e Costa Rica, os quatro países que mais forneciam bandeiras de conveniência na época. Era uma questão fundamentalmente sindical, e de honra também, extinguir esses registros. O da Costa Rica acabou sendo extinto, em grande parte devido ao fato de o país não ter conseguido manter os standards nos níveis almejados. O Panamá, por sua vez, ocupa atualmente o 1º lugar em número de embarcações no mundo, seguido pela Libéria. No entanto, não chega a 1% a participação de trabalhadores nacionais nos navios panamenhos. Honduras mantém até hoje standards extremamente baixos e é comum ouvir no meio marítimo relatos sobre indivíduos que nunca navegaram, mas que compraram certificados e, assim, começaram a trabalhar como marítimos na bandeira Hondurenha.

De acordo com as normas da Organização Marítima Internacional – IMO, cada país emite as certificações dos tripulantes no seu registro, o que, até hoje, favorece a existência de um comércio paralelo de venda de certificados. O Panamá, campeão dos registros de conveniência, já foi denunciado inúmeras vezes por esse motivo.

Um fato conhecido na ITF, que expôs a existência desse comércio, foi a compra de um certificado para o ex-secretário-geral da federação, David Cockroft. Ele chegou à ITF como funcionário administrativo, ficou encarregado da seção de aviação, passou para comunicações, educação e, finalmente, chegou a secretário-geral. Um burocrata que nunca navegou obteve certificação que permitia a ele desempenhar as funções de Imediato em viagens internacionais. Até onde se sabe, o certificado foi comprado nas Filipinas e emitido pelo Panamá. Consta que, feita a denúncia, o então diretor da Autoridade Marítima do Panamá – AMP teria ido a Londres, onde encontrou Cockroft em sua sala, constatando que o certificado, além de original, continha a assinatura autêntica dele mesmo.

É sabido e notório que há um alto grau de corrupção nas transações com registros de conveniência. Uma das práticas ilícitas mais conhecidas é a assinatura de certificados em branco enviados para consulados de diversos países, que os compram. Um certificado concedido sem conferência dos documentos exigidos é ilegal em qualquer atividade profissional, e evidencia a existência de corrupção. No entanto, é prática corrente no mercado das bandeiras de conveniência.

Os acordos da ITF

Passados alguns anos, a ITF percebeu que o fenômeno das bandeiras de conveniência já estava consolidado e resolveu modificar a sua política. Paralelamente ao combate aos registros de conveniência – que manteve como objetivo político – ela incorporou um objetivo industrial: tentar negociar acordos coletivos aceitáveis. A fim de garantir salários e condições de trabalho minimamente decentes para os marítimos a bordo desses navios, a entidade passou a negociar acordos com organizações internacionais, incluindo os empregadores marítimos e as agências provedoras de tripulação.

Inicialmente, todos os acordos eram do tipo “standard”, assinados depois de muita luta e, geralmente, por força de greves. O standard era um bom acordo, cuja intenção era fazer o empregador pagar salários similares àqueles dos países desenvolvidos, nos quais não se quis registrar o navio.

Quando a ITF percebeu que, mesmo nas bandeiras de conveniência, havia armadores com disposição para negociar, resolveu criar um outro tipo de acordo, que reduziria os custos para o empregador. Ele levou o nome de Total Crew Cost – TCC, um “pacote” que incluía todos os custos trabalhistas, de salários a indenizações por acidente ou morte. O TCC, hoje praticamente extinto, saía 40% mais barato para o armador. Quer dizer, os salários da tripulação seriam reduzidos em 40% sempre que o armador decidisse negociar por boa vontade em vez de obrigar os trabalhadores a um conflito. A partir daí, naturalmente, houve um crescimento substancial do número de navios com acordos, com grande predominância do tipo TCC sobre o standard.

Os acordos da ITF, no princípio, eram assinados apenas pelos sindicatos do país onde se encontrava a propriedade efetiva (beneficial ownership) do navio, independentemente da bandeira sob a qual a embarcação estivesse registrada. Assim eram estabelecidos os salários e as condições de trabalho a bordo para toda a tripulação dos navios com BDC, qualquer que fosse a sua nacionalidade. O cumprimento dos acordos seria observado por inspetores da ITF e contatos portuários ao redor do mundo. Todos os navios abrangidos por um acordo aprovado pela ITF receberiam um certificado (blue certificate), atestando que os salários e as condições de trabalho acordados eram compatíveis com o estabelecido pelo Comitê de Práticas Aceitáveis da entidade. Se o navio não estivesse pagando salários, não havia acordo. A ITF, então, convocava os trabalhadores portuários – peças fundamentais da campanha – e os orientava a não trabalharem mais naquele navio. Obrigava-se, então, a empresa dona da embarcação a assinar um acordo coletivo com o sindicato de portuários, representando a federação.

Como consequência de decisões tomadas em seu Congresso de 1948, a ITF logo incorporou em seus acordos o conceito de país provedor de mão de obra (labour supply country), com o intuito de atender também à demanda dos sindicatos dos países dos tripulantes dos navios. Deste modo, o dinheiro pago pelos armadores pelo blue certificate foi dividido: 50% para os sindicatos de trabalhadores do país que detinha a propriedade efetiva do navio (beneficial ownership) e 50% para os sindicatos do país de origem da tripulação, na forma de uma mensalidade estabelecida para esse fim.

Como consequência de decisões tomadas em seu Congresso de 1948, a ITF logo incorporou em seus acordos o conceito de país provedor de mão de obra (labour supply country), com o intuito de atender também à demanda dos sindicatos dos países dos tripulantes dos navios. Deste modo, o dinheiro pago pelos armadores pelo blue certificate foi dividido: 50% para os sindicatos de trabalhadores do país que detinha a propriedade efetiva do navio (beneficial ownership) e 50% para os sindicatos do país de origem da tripulação, na forma de uma mensalidade estabelecida para esse fim.


“Acordos continuam a ser vendidos, com perdas para os trabalhadores, mas os burocratas da ITF não se sensibilizam.”

Ricardo Ponzi
Presidente da FNTTAA

A flexibilização dos acordos

Em algum momento, entre os anos 1970 e 1980, a ITF começa a flexibilizar os acordos para que os sindicatos filiados consigam incluir características individuais. A fim de favorecer a contratação de marítimos dos seus países, os sindicatos podiam negociar redução nos salários. Isso levou a diferenças salariais entre os marítimos de um país em relação a outro. Infelizmente, há sindicatos que funcionam como agências de mão de obra e querem ser pagos por isso. Criou-se, então, uma coluna no acordo que levou o nome de “funding element” – FE, originalmente, um lastro que o empregador teria para fornecer uniformes, promover cursos etc., que chegava a 20% do salário do marítimo. Esse elemento, no entanto, acabou virando instrumento de concorrência desleal. Sindicatos passaram a reduzir o FE – ou mesmo abrir mão dele – e, pela economia proporcionada aos armadores, eram eles mesmos, também, favorecidos de algum modo.

Então, acabou sendo esse o negócio: quem vendia mais barato, vendia volume e ganhava muito dinheiro. Um ótimo negócio, principalmente se a entidade em questão não se comportava como sindicato – quer dizer, se não prestava atendimento aos seus representados, não dava assistência jurídica, não cobrava do empregador que pagasse os salários em dia… Em suma, o próprio sindicato agia como empresa de colocação, mas com cara – e direitos – de entidade sindical marítima.

Se com o TCC já deixaram de embarcar marítimos europeus, depois de até 20% de economia pela isenção ou redução do FE, as empresas pararam de utilizar marítimos da América Latina, considerados muito caros. Há países da Ásia ou da África em que, com um salário de 1 mil dólares, apenas quando embarcado, vive-se bem. Mas o padrão de vida na nossa região não nos permite viver com salários tão baixos, ainda tendo de economizar para os tempos de repouso e férias.

As bandeiras de conveniência ganharam um setor especial na ITF, primeiramente, por fazer um trabalho para dois setores: marítimos e portuários. Em segundo lugar, porque a campanha em si virou uma instituição. Bruno De Bonis, ex-Secretário do Setor Especial dos Marítimos da ITF começou a atentar para esse fato e propôs medidas para impedir a ação de sindicatos que agiam como empresas. Fazer isso para vender mão de obra barata é uma atitude totalmente antissindical, que estimula a corrupção e a concorrência desleal. De Bonis estabeleceu em 10% o valor máximo para o funding element e o empregador ainda era obrigado a demonstrar quais serviços prestava aos marítimos com essa quantia. Em resumo, funding element é dumping social e o que o De Bonis fez foi uma demonstração de que a ITF podia funcionar realmente, sobretudo naquele período.

“Agora as coisas mudaram muito. Acordos continuam a ser vendidos, com perdas para os trabalhadores, mas os burocratas da ITF não se sensibilizam. Não entendem que quando você realmente está na atividade sindical é porque você é da profissão dos seus companheiros e tem respeito por ela. Quando você é sindicalista, você tem princípios sindicais, não dá para vender trabalhadores”, reclama o Presidente da FNTTAA, Ricardo Ponzi.

Quem é Stephen Cotton?

A liderança na política de favorecimento da atividade negocial sobre a sindical na ITF tem um nome: Stephen Cotton, Secretário-Geral da ITF, que, em 2014, sucedeu a David Cockroft. Cotton ingressou na ITF em 1993, como chefe da unidade de acordos na seção marítima. Mais tarde, foi promovido ao cargo de secretário adjunto do Departamento Especial dos Marítimos (SSD), o mesmo anteriormente ocupado por De Bonis.

Relatam na ITF que na gestão de Cotton ficou evidente o processo de relaxamento das políticas, com transações feitas fora das reuniões e maior flexibilização na negociação de acordos coletivos. Alguns sindicatos passaram a ser capazes de baixar o custo do acordo para colocar trabalhadores, vendendo mão de obra no mercado e prejudicando outros marítimos. Isso afetou principalmente a América Latina, onde há poucas entidades de marítimos que ainda representam trabalhadores em bandeira nacional. Em primeiro lugar, de longe, o Brasil. Depois, a Argentina, o México e o Chile. No resto do continente o processo de bandeiras de conveniência praticamente acabou com as frotas nacionais.

No Equador, a situação da Marinha Mercante é particularmente complicada. Alvaro Noboa, político de extrema direita, dono das maiores plantações de banana no país que mais exporta a fruta no mundo, herdou os plantios e os navios do pai. Botou as embarcações em bandeira de conveniência, nas Ilhas Cayman, mas manteve os trabalhadores nacionais, com salários locais. Durante a gestão de Cotton no SSD, os marítimos equatorianos entraram em greve para exigir a manutenção de seus salários e benefícios. Haviam obtido de Noboa o compromisso de mantê-los empregados nas condições e com os direitos previstos na legislação equatoriana. Porém, por baixo dos panos, a empresa de Noboa fez um acordo com a ITF para substituir os nacionais a bordo. Os marítimos equatorianos foram, então, desembarcados por guardas armados e substituídos por filipinos. Um relatório do caso foi enviado a Cotton, que nada fez. A omissão da ITF se deu não apenas quanto à violação de direitos trabalhistas, mas também de direitos humanos. Esses marítimos estão até hoje lutando na Justiça do Equador.

Dinheiro, o canto de sereia da ITF

A ideia dos acordos, inicialmente, parecia boa. Mas, por falta de olhar para mais adiante, a ITF talvez não tenha percebido o monstro que estava criando. A questão das bandeiras de conveniência é importantíssima para se compreender um dos principais problemas da ITF, atualmente, que é ter muito dinheiro. Com o aumento no número de acordos, o volume de recursos arrecadado pela ITF começou a aumentar. Quando um armador assina um acordo com a entidade, se compromete, entre outras coisas, a pagar taxas aos sindicatos signatários e à ITF.

Todos os marítimos alcançados pelos acordos ITF pagam como contribuição, obrigatoriamente, um valor que gira em torno de 1,5% dos seus salários, quantia que é dividida entre os sindicatos do país provedor de mão de obra e do país de origem do armador. A ITF, por sua vez, estabeleceu um fundo mantido pelo ITF Seafarers’ Trust, uma instituição de caridade. Os armadores internacionais pagam ao fundo um valor, estabelecido no acordo, por cada marítimo empregado. Este fundo é administrado pela própria estrutura da ITF. A lógica seria: já que o armador foge dos encargos da sua bandeira de origem, que ao menos esse dinheiro possa ser revertido em benefícios sociais para os marítimos que trabalham nos navios, servindo como uma espécie de compensação.

Ninguém contesta que esse Seafarers’ Trust possa até patrocinar boas causas, o problema é que ele também sofre grande interferência dos armadores, que cada vez mais demonstram interesse em participar da sua administração. Além disso, o fundo estaria se prestando a interesses menos nobres, segundo informações de quem conhece o interior do trade. Ao receber o valor dos acordos firmados com os navios de BDC, a ITF calcula quanto é possível doar para reduzir impostos, destinando o dinheiro a essa suposta instituição de caridade. Suposta porque, ainda que seja legalmente uma entidade independente, ela funciona dentro da ITF, com pessoal nomeado pela ITF e o presidente precisa ser um filiado da ITF. Conclusão: é a própria ITF.

“Isso é parte do jogo que a ITF faz. Ela recebe uma cota anual por posto de trabalho contemplado pelo acordo e, eventualmente, fica também com a cota sindical, recrutando trabalhadores não domiciliados. Não é mais interessante para a cúpula da ITF acabar com o sistema das bandeiras de conveniência desde que criaram este nicho de ganhos com trabalhadores que não são de país nenhum e tampouco estão protegidos pelo registro do navio, já que navegam sob a bandeira de um país que eles provavelmente sequer conhecem”, revelou à UNIFICAR uma fonte que preferiu manter o anonimato.

A ITF é cocriadora e financiadora do International Maritime Employers Committee – Imec, uma entidade de empregadores que sequer são armadores de fato. Trata-se de um grupo de agências que funciona como associação de operadores de pessoal, intermediando as contratações. Em síntese, são “laranjas” dos armadores, financiados pelos próprios sindicatos laborais, por mais esdrúxulo que algo assim possa soar. Não surpreende, portanto, o fato de que os salários mínimos a bordo estabelecidos nos acordos da ITF tenham diminuído tanto nos últimos 15 anos. A remuneração de um timoneiro marinheiro (able seaman – função usada como referência nas tabelas salariais), que já foi superior a US$1,2 mil, hoje, na prática, mal chega a US$1 mil.

Hospital dos Marítimos, em Manila, nas Filipinas, um dos principais países fornecedores de mão de obra para os navios em bandeira de conveniência. À direita, o secretário geral da ITF, Stephen Cotton, na inauguração de uma obra no Hospital dos Marítimos, financiada pela ITF

A disputa pelos milhões dos acordos

Outro ponto de escoamento do dinheiro arrecadado pela ITF nos acordos passou a ser o pagamento do quadro de cerca de 150 inspetores portuários ao redor do mundo. Primeiro eram os sindicatos que arcavam com a manutenção do inspetorado, que então passou a ficar a cargo da ITF. Salários, benefícios e até moradia são pagos a inspetores que muitas vezes sequer são sindicalistas. Deveriam ser, mas não são. O inspetorado acabou virando cabide de emprego para os amigos dos dirigentes, como antigos funcionários atestam.

Como o dinheiro pago pela armação nos acordos da ITF também vai para os sindicatos de marítimos dos países provedores de mão de obra, esses se mostram cada vez mais interessados em ganhar sua fatia no bolo das bandeiras de conveniência. São muitos milhões de dólares injetados em nações de baixo custo em contrapartida à utilização de seus trabalhadores em bandeiras de conveniência. Os valores chegam a impactar o PIB de algumas nações, servindo tanto para financiar programas de saúde, educação, previdência e outros, quanto para infundir no movimento sindical o dinheiro das bandeiras de conveniência.

Severino Almeida Filho, que assumiu seu primeiro cargo na ITF em 1997, conta que nem sempre foi assim. Porém, de uns anos para cá o foco da atividade sindical desenvolvida pela ITF deixou, definitivamente, de ser o trabalhador. “Os acordos estão num patamar cada vez mais baixo, acarretando um sistema extremamente cruel para o marítimo mundial. Novos sindicatos surgem a toda hora para ver se conseguem disputar esse mercado. Eles querem é ganhar dinheiro, os marítimos que se explodam. Tive uma vez, em uma reunião grande da ITF, uma discussão acalorada com um colega alemão, entusiasta desse sistema. Eu tentava mostrar a ele o contrassenso dessa política e a necessidade de corrigirmos os rumos. Ao que ele então respondeu: ‘se isso é ruim para o marítimo, ele que se defenda de nós’. Fiquei muito preocupado ao ouvir aquilo e, mais ainda, com o silêncio dos dirigentes, que não disseram uma palavra. Nós que há anos avaliávamos a ocasião de deixarmos a ITF, resolvemos agir. Fizemos isso porque concluímos que, agora, teríamos de nos defender dela. Não fazia mais sentido continuarmos em seu interior. Mesmo discordando de sua política, só estávamos legitimando suas ações e decisões”, explica Severino.


“Provavelmente, daqui a uns 20 anos, ver os marítimos nacionais embarcados em suas Marinhas Mercantes, como minha geração ainda testemunhou, só será possível em visita a museus. Até lá, nosso pessoal, que já está sofrendo, se não se dispuser a lutar com coragem e inteligência, irá sofrer mais.”

Severino Almeida Filho
Presidente da CONTTMAF e do SINDMAR

A saída da CONTTMAF

Durante quase 20 anos, o escritório da ITF para a América Latina e o Caribe, localizado no Rio de Janeiro, esteve sob o comando do Oficial de Náutica mexicano Antonio Rodriguez-Fritz, demitido do cargo por se opor às políticas atuais da ITF. (leia a entrevista na página seguinte). A saída da CONTTMAF, que sempre o apoiara, enfraqueceu a figura de Fritz, que foi substituído interinamente na secretaria regional por Edgar Díaz.

A ITF é um problema para o Brasil? Ainda não, mas poderá se tornar. Temos 600 embarcações atuando no apoio marítimo e na cabotagem. Isso representa um dinheiro que o esquema da ITF consome de forma insaciável. O oligopólio formado pelas empresas internacionais que operam na cabotagem brasileira tem estreitado relações com a entidade. A Maersk, por exemplo, criou um grupo de trabalho especial para discutir os problemas da empresa com a ITF, buscando soluções conjuntas. Um conluio, com a clara intenção de beneficiar, não os trabalhadores, mas a armação. Os armadores, que já pagam a ITF pelos acordos coletivos de trabalho, poderão pagar também para que a entidade aprove a visão deles do setor.

Qual será o perfil da Marinha Mercante mundial daqui para a frente? É difícil precisar. Mas, seja ele qual for, o Brasil reúne condições de ser um dos últimos a perder suas características de participação dos marítimos nacionais.

“Provavelmente, daqui a uns 20 anos, ver os marítimos nacionais embarcados em suas Marinhas Mercantes, como minha geração ainda testemunhou, só será possível em visita a museus. O mais provável é que já estejam em operação navios não tripulados. Até lá, nosso pessoal, que já está sofrendo, se não se dispuser a lutar com coragem e inteligência, irá sofrer mais. Muito mais. Em grande parte, por sua própria responsabilidade, se não conseguirem compreender o que está em jogo. Contudo, sou um otimista por natureza e digo, sem medo de errar, que a solução para nossa resistência está no sindicalismo de base, com entidades que efetivamente defendam os interesses de seus representados, como o SINDMAR. Com unidade e luta, a porta do inferno não nos será aberta. Se a abrirem, não entramos. A cúmulo-nimbo que paira sobre nossas águas e terras, gerada pelas articulações para o golpe de 2016 e mantida pela vitória da estupidez nas eleições do ano passado, irá com certeza passar. Nosso país voltará a crescer e as novas gerações irão reconstruí-lo. Por nossa posição geográfica e pelo gigantismo das costas brasileiras, o transporte de produtos necessitará termos nossas águas controladas pelos brasileiros. Quem viver verá”, conclui Severino.


Antonio Fritz em momentos de sua atuação como líder sindical

Entrevista · Antonio Rodríguez Fritz

“A direita corrupta não está se apoderando apenas dos governos, mas também das instituições”

A frase acima é como o Oficial de Náutica mexicano e dirigente sindical Antonio Rodríguez Fritz define a política atual da Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes — ITF. Durante duas décadas, ele esteve à frente do escritório da ITF Regional Américas, no Rio de Janeiro. Fritz e a CONTTMAF se apoiaram mutuamente nos últimos anos, como vozes dissonantes dentro da entidade, defendendo um sindicalismo autêntico, voltado para os direitos dos trabalhadores, em especial, dos marítimos nacionais em seus próprios países.
Depois que os sindicatos brasileiros saíram da ITF, Antonio Fritz se tornou alvo de retaliação daqueles a quem vinha incomodando. Foi sumariamente suspenso de suas atividades e, por fim, demitido. Isso se deu sem que ao menos soubesse das supostas acusações contra ele e sem qualquer direito de defesa, uma gritante violação ao devido processo demissional da entidade.
Nesta entrevista, Fritz expõe os bastidores de uma ITF entregue à ganância e à falta de escrúpulos de seus dirigentes, que, regidos pelo capital, seguem enchendo os bolsos, sem qualquer comprometimento com a causa sindical.

UNIFICAR: Como se deu a sua saída da ITF?

Fritz: Em janeiro deste ano, eu estava oficialmente de férias quando recebi dos meus superiores, em Londres, a informação de que havia sido suspenso das minhas funções de secretário regional. Disseram que havia uma queixa contra mim e que o caso seria apurado num prazo de 30 dias. Depois disso decidiriam se eu voltaria ou não a exercer o cargo. Em seguida, meu e-mail corporativo foi cancelado e fui orientado a me manter afastado do escritório onde trabalhava e a não fazer contato com quaisquer entidades filiadas.

UNIFICAR: O que aconteceu quando retornou ao escritório regional?

Fritz: Quando voltei, dois meses depois, eu me municiei das garantias preconizadas pela própria ITF nos casos em que seus membros precisam se confrontar com empregadores que violam os direitos dos trabalhadores. Cheguei ao local acompanhado de líderes sindicais e outras testemunhas, para me proteger de informações falsas e más interpretações. Nesse grupo, estavam pessoas ligadas à CONTTMAF e ao SINDMAR, ao qual eu, que sou Oficial de Náutica, me filiei quando cheguei ao Brasil, em 1999. A presença dos sindicalistas foi mal recebida pela cúpula da ITF, que decidiu me suspender outras duas vezes até que, finalmente, oficializaram a minha demissão.

UNIFICAR: Qual foi a alegação?

Fritz: Eles nunca disseram que falta exatamente eu teria cometido. Como causas da minha demissão, alegaram, genericamente, violação de segredo da empresa e ato de indisciplina ou insubordinação. Com isso, fui considerado responsável pela minha demissão, motivo pelo qual saí sem receber um único centavo após 20 anos de serviço. O devido processo é uma questão legal e nele está contido o direito de defesa. Cancelaram meu e-mail da ITF e tomaram de volta o celular corporativo. No entanto, eu sequer soube quais seriam as supostas acusações contra mim e, por isso, não tive chance de me defender.

UNIFICAR: O que embasaria esse suposto ato de insubordinação de que o acusaram?

Fritz: A ITF está financiando um projeto para a construção de prédios com estacionamentos para motoristas de caminhão, na Argentina. Fui notificado de que havia uma queixa de um sindicato argentino de que durante o 44º Congresso da ITF, em Singapura, eu teria feito comentários sobre o projeto, insinuando que seria mais rentável para o sindicato realizar o projeto sem a ITF. Conheço o sindicalista que teria denunciado o fato. Só que essa conversa, da forma como narram, nunca existiu.

UNIFICAR: Como foi a conversa, de fato?

Fritz: Alguém me enviou uma gravação da conversa que eu realmente tive com esse argentino, um camarada que não vale nada. No áudio, ele fala que eu estou precisando de proteção, que o Stephen Cotton (secertário geral da ITF) está tentando me pegar, e me oferece imunidade. Ele diz que para me demitir precisam do presidente da ITF, do secretário-geral e do vice-presidente para a América Latina e o Caribe, o argentino Pablo Moyano. O acordo era que o Severino (Presidente da CONTTMAF e do SINDMAR) voltaria a ser o próximo vice-presidente, mas aí não poderiam me mandar embora. Então, ele (Stephen Cotton) queria o Moyano para que eu fosse demitido. Só que a eleição não foi feita realmente, porque o procedimento da ITF, como está no estatuto, com voto direto e urnas, não foi respeitado. Isso tudo está gravado, mas ninguém na cúpula da ITF quer ouvir. Escrevi para o presidente da ITF, Paddy Crumlin, para dizer que eu tinha a gravação e podia provar que o que estavam dizendo era mentira, mas ele nunca me respondeu.

UNIFICAR: Como os sindicatos argentinos estariam sendo beneficiados pela ITF?

Fritz: O Stephen Cotton não concordou com que a CNTTT fizesse um pagamento extraordinário reduzido por uma questão também extraordinária, que foi a queda na arrecadação sindical após a reforma trabalhista no Brasil. Ele não aceitou a redução do pagamento sem reduzir o número de filiações. Já para a Argentina, ele negociou o incremento da filiação, sendo que a maioria dos filiados sequer pagou. Isso é complicado demonstrar porque ele tem um jogo de dinheiro, tem contas especiais em Londres. Digamos que são sacolas de dinheiro que ele destina para alguns sindicatos que ele utiliza em seu benefício. De novo, corrupção.

UNIFICAR: O que Stephen Cotton e seu grupo teriam a ganhar com a sua saída da ITF?

Fritz: O verdadeiro contrapeso na ITF sempre foi o Brasil. Você pode ter “pelegagem” no movimento sindical brasileiro, mas, felizmente, não no setor de Transporte. Por isso, o objetivo deles é fragmentar o escritório na América Latina, botar uma parte na Argentina, outra no Panamá e, talvez, até fechar a representação no Brasil. Londres quer dividir o escritório por uma questão muito simples: querem que a região não tenha identidade e, assim, perca força. Essa, obviamente, não é a vontade dos filiados, por isso, nunca me propus a apoiar essa ideia.

UNIFICAR: Querem o caminho livre custe o que custar, é isso?

Fritz: O Stephen Cotton não quer na ITF ninguém que conheça a ITF e tenha visão sindical. Eu era o segundo ou terceiro funcionário mais antigo e, antes de mim, já tinham ido embora uns 50. Todos foram demitidos ou convidados a sair. Muitos que vieram depois de mim também foram demitidos pelo mesmo motivo: conheciam a instituição bem demais. Dezenas de trabalhadores já saíram da ITF sendo assediados, pressionados, e vários terminaram com problemas psiquiátricos. Fortunas têm sido gastas pela ITF em indenizações. Sei de um caso de £250 mil de compensação para duas pessoas. Agora, soube de um pagamento de US$ 750 mil a um ex-funcionário. São pessoas que podem demonstrar a forma ilícita como foram demitidas. Então, negociam com a ITF e, depois de aceitarem o dinheiro, assinam um acordo de confidencialidade. Eles têm comprado dezenas de funcionários, pagando para que peçam demissão.

UNIFICAR: Já chegaram a lhe oferecer algo assim?

Fritz: Através de pessoas do escritório, perguntaram o que eu gostaria de receber para sair. E eu disse que não estava negociando. Sempre penso que quando eu voltar para casa, precisarei olhar no rosto do meu irmão, que é marítimo, do meu cunhado, que é marítimo, e dos meus amigos marítimos. Não posso sentir vergonha de olhá-los nos olhos. Até para escolha de quem ia às reuniões da ITF, você se dá conta de que o critério é amizade ou conveniência. Eu nunca pude aceitar isso. Os meus amigos são dirigentes sindicais, eu teria vergonha de tratar com eles se defendesse algo que vai contra os seus interesses. Uma coisa que eu sempre tentei praticar como dirigente sindical é não falar uma coisa e fazer outra.

UNIFICAR: Qual é, a seu ver, o plano do Stephen Cotton?

Fritz: Ele está se estruturando para ficar como o dono da ITF e, para isso, faz qualquer coisa. O presidente, Paddy Crumlin, tem tido problemas no sindicato dele, então tem se apoiado muito no dinheiro da ITF. A ITF tem patrocinado projetos ou atividades de sindicatos “amigos”. Na verdade, o que ela faz é comprar apoio desses sindicatos, por meio de dinheiro, projetos, benesses, bons tratamentos etc. Por exemplo, um dos membros do conselho executivo viajava a trabalho de classe executiva, autorizada pelo Stephen Cotton e paga pela ITF. Diárias em hotéis de luxo, ingressos para jogos de futebol, refeições caras, bebidas à vontade… tudo por conta da ITF. Aquele que não tem princípios morais muito bons sucumbe diante do encanto do dinheiro. O que eles têm feito é uma mistura de canto de sereia com venda da alma ao diabo. Mas aquele que por uma única vez aceita ter um preço, depois não vale mais nada.

UNIFICAR: Em alguma medida, você deveria estar incomodando essas transações.

Fritz: O Stephen Cotton tem comprado vantagens com o dinheiro da ITF, que não poderia estar sendo usado para isso. E eu era incômodo. Primeiro, pela antiguidade. Depois, porque eu, sim, sou dirigente sindical e sou trabalhador em transporte, coisa que ele nunca foi e nunca será. Em terceiro lugar, algo por que sempre fui muito criticado na entidade: eu gasto pouco. A ITF tem se convertido em uma corrida para ver quem tem autorização para comprar o jantar mais caro, o vinho mais caro ou se hospedar no hotel mais caro e eu nunca entrei nesse jogo. Os hotéis indicados por nós sempre foram muito criticados por Londres, por supostamente não serem bons o suficiente. Com o último, em Cartagena, eles disseram que seria a última vez que eu iria indicar um hotel para uma conferência regional. Acharam muito ruim um hotel quatro estrelas com uma diária de US$ 90, incluindo alimentação. Um ótimo preço, que eu negociei dois anos antes. O dinheiro não era meu, mas eu sei o que custa ao filiado pagar a cota sindical. Com que cara eu pagaria um hotel caríssimo? Eu pagaria se fosse do meu próprio bolso? Se a resposta é não, então eu não posso, isso seria vergonhoso para um dirigente sindical. Ser cuidadoso com o dinheiro dos outros sempre me criou atrito com ele.

UNIFICAR: Qual é, então, o padrão ITF de gastos?

Fritz: O Stephen Cotton nunca assina os cheques das despesas com hospitality (quando se convida um filiado para alguma atividade). Ele autoriza e alguém assina, para que nunca apareça o nome dele. É normal haver contas de restaurante no valor de US$ 3 mil para 8, 10 pessoas. Para contas de bar, ele usa o cartão corporativo e fica a conta aberta para as pessoas consumirem o que quiserem. Quando ia com eles a um bar, eu ficava constrangido com isso e pagava do meu bolso. Não aceitava pôr as minhas despesas no cartão da ITF.

UNIFICAR: Você participou do episódio no Equador, quando marítimos que tinham assinado um acordo da ITF foram desembarcados por guardas armados para dar lugar a tripulantes filipinos. Como foi essa negociação?

Fritz: Se não me engano, o ano foi 2006. Eram 3 ou 4 navios de propriedade do Alvaro Noboa, bilionário que fez fortuna, em parte, empregando trabalho infantil e reprimindo violentamente os trabalhadores. Eram cerca de 50 marítimos equatorianos, que tinham um acordo assinado com a ITF e, portanto, tinham direito a salários mais altos e condições de trabalho diferentes daquelas que lhes estavam sendo impostas. Fiz várias reclamações na ITF e nunca me responderam. O Stephen Cotton não fez absolutamente nada para defender os marítimos daquele país. Por quê? Dinheiro. Mas eu e outros companheiros fizemos muito barulho e até levamos o crédito por Noboa não ganhar as eleições para a presidência do Equador naquele ano. No último dia da campanha, ele chegou a se ajoelhar para pedir votos e, ainda assim, perdeu no segundo turno. O que aconteceu no Equador foi um espelho da gestão Stephen Cotton: flexibilização dos acordos e promoção de algumas entidades para a venda dos marítimos. Alguns sindicatos dos países provedores de mão de obra começaram a ter crescimento e os outros passaram a perder oportunidades.

UNIFICAR: Uma política à qual você sempre se recusou a aderir. Por quê?

Fritz: Para a ITF o que interessa é assinar o acordo, não importando se o sindicato é limpo ou não. Eu não posso vender um filiado meu, um Segundo Oficial de Náutica, por exemplo, por US$ 1.500. Como posso aceitar um salário desses? Se ofereço algo assim no meu sindicato, vou ser xingado e com razão. Isso porque um sindicato honesto tem assembleia e o dirigente bota a cara. Nunca entenderam quando eu dizia que não faria nada que não pudesse sustentar na frente dos meus companheiros. Isso envolve dignidade, princípios, honestidade e também o fato de eu vir dessa indústria. Se eu sou um sindicalista, que veio da base, como vou trair aquilo por que eu lutei? Eu briguei no meu sindicato, no México, para tirar a diretoria anterior, que não era honesta. Eu não aceitava o fato de os nossos acordos não serem honestos. Eu participava das negociações e via que o que acontecia na mesa de negociação era uma coisa e, depois, eram feitos outros acordos fora da mesa.

UNIFICAR: Por que acredita que a ITF chegou ao ponto em que está?

Fritz: Dinheiro em excesso. Quando eu entrei na ITF, ela recebia pelas cotas sindicais cerca de £5 milhões por ano. Pelos acordos de bandeiras de conveniência, recebia £8 milhões. Hoje, a ITF recebe de cotas sindicais, no máximo, £6 milhões e, pelos acordos de conveniência, de £40 milhões a £46 milhões por ano. Antes, porém, o inspetorado custava £6 milhões e agora se gasta com ele quase £40 milhões. Em quê, se o número de inspetores cresceu apenas 10%? Desde que o David Cockroft saiu, a forma de gastar tem sido incrível!

UNIFICAR: E ninguém lá dentro contesta esses gastos?

Fritz: O que acontece é que tudo passa pela decisão do conselho executivo, mas nunca se fala, de forma honesta, sobre o que está sendo aprovado por ele. A primeira questão de falta de honestidade é que nas reuniões do conselho, duas vezes por ano, nunca aparecem os documentos fiscais para prestação de contas. Sem esses documentos, acaba-se aprovando as contas, cada vez maiores, usando-se apenas a boa-fé. E a cada reunião, o mesmo se repete, sempre havendo uma justificativa para não apresentar as contas. Para isso, o Stephen Cotton é extremamente competente.

UNIFICAR: Como resume o momento político dentro da ITF?

Fritz: O que vejo é um processo de escuridão onde alguém está utilizando mecanismos não compatíveis moralmente com os princípios sindicais, para permanecer indefinidamente na ITF, como uma empresa. Essa é a nossa visão. Esperamos fazer com que as pessoas entendam isso para que reclamem, para que lutem. É importante que voltemos a ter uma ITF forte, com princípios sindicais e integridade moral. Mais do que nunca as empresas estão se concentrando, o capital não tem fronteiras. E o que os trabalhadores precisam é de uma referência sindical honesta, moderna, futurista, que os ajude a aprender com as experiências passadas para saber como agir na defesa dos seus interesses.


A UNIFICAR contatou a ITF para obter a sua versão dos fatos que levaram à demissão de Antonio Rodríguez Fritz. Um porta-voz da entidade respondeu com a seguinte declaração:

“Antonio Fritz, secretário regional para a região da América Latina, deixou a ITF em março de 2019 após quase 20 anos no cargo. Desejamos a Antonio tudo de melhor para o futuro nos próximos passos de sua carreira.”