O Brasil como o conhecemos está em rota de desmanche na sua trajetória como Estado e nação. Pode-se tornar um Estado e Sociedade sem coerência interna, como me disse Pedro Celestino, um patriota. Um lugar onde o povo está acossado social e culturalmente, grande parte da classe trabalhadora transformada em indesejável e sem direitos, acometido de verdadeira regressão civilizatória.
A história registra com profusão, então simplifico. Primeiro ano do século passado, Sociedade Real de Física, seu presidente discursa dizendo que os segredos da matéria tinham sido, no fundamental, resolvidos pela Física (referia-se à obra de um dos maiores cientistas de todos os tempos, Newton). E registrou apenas “duas pequenas nuvens no horizonte” para completar a obra. Elas eram a da relatividade e da mecânica quântica, até hoje tentando se unificar, que trouxeram à luz gênios da humanidade como Einstein, Max Planck e tantos outros. Foi uma grande tempestade revolucionária na Física.
Sobre o céu do Brasil há três massas de nuvens que podem formar uma tempestade perfeita ou não, podem ser progressivas ou ainda mais regressivas. Que fazer? Esperar que maturem ou esconjurá-las? As duas coisas; mas é bom, em política, antecipar-se.
Pesada nuvem econômica e social. O desalento se abate sobre a população e a economia segue em recessão após mais de cinco anos. A desindustrialização atinge o menor nível da história e avança a desnacionalização da indústria. A capacidade produtiva ociosa é imensa mas não há retomada do ciclo. Somos a 8ª economia do mundo, em declínio, mas a 9ª vencedora do prêmio da desigualdade social.
Crescimento, emprego e renda nunca fez parte do léxico do presidente. O governo se restringe ao reducionismo boçal de que a “reforma” da previdência salvará a tudo e todos. Já vivemos essa mistificação com o amaldiçoado tripé macroeconômico (renegado até por liberais como André Lara Rezende), que deixou um legado de “década perdida”.
Aliás, teremos a terceira década perdida. A política econômica é pró-cíclica, juros altos, cortes drásticos de investimento público, como lembra Bresser Pereira mais uma vez em recente artigo. Nem mesmo com a paulada contra a renda do trabalho em proveito do capital, como propõe a dita reforma da previdência no regime de capitalização (onde não contribuem os empresários), fará retornar o investimento privado sem a contraparte pública indutora.
Mesmo assim, o empresariado - na pesquisa BTG-Pactual de 6 de maio - continua acreditando em Papai Noel e se mostra otimista. O por quê? O atoleiro econômico é brutal, mas eles não vislumbram outra saída. E redobram as apostas na agenda presidencial. A duplicidade (hipócrita?) se refrata em vozes parrudas do mundo econômico e político. No meio está Fernando Henrique Cardoso com seus ademanes - nem entendeu, parece, ter sido seu partido o maior derrotado nas eleições presidenciais.
Pesada também a nuvem da crise política e institucional que se arrasta desde o golpe de 2016. É outro atoleiro, entre o clã Bolsonaro e o establishment político, entre este e o partido da Lava Jato, também entre este e o próprio STF. As Forças Armadas foram envolvidas nelas - elas, que diziam ser importante não politizar as armas, hoje participam com mais de cem cargos no governo.
Também no interior do governo acirram-se as disputas e contradições. Até mesmo Villas Boas, para não dizer de Hamilton Mourão, vice-presidente, estão em contraponto aberto aos ideólogos do clã do presidente, também em choque com o Legislativo e Judiciário. O líder do governo na Câmara dos Deputados, desalentado, imagina até impeachment presidencial se a articulação política continuar naufragando em meio à crise econômica e social.
As fichas da sociedade vão caindo paulatinamente. Pesquisas mostram o maior declínio da popularidade de um presidente aos quatro meses de governo. Mas é ilusão imaginar que já se derrotou a “reforma” da previdência (pode-se desnaturá-la, sim, quanto ao regime de capitalização), ou que as forças conservadoras estejam na defensiva.
Face a essa crise, o avanço do autoritarismo e do Estado policial é, de imediato, o perigo maior pois designa o terreno em que se vai conviver e combater. A lei contra o abuso de autoridade é, nessa hora, uma exigência dos fatos e o Congresso a tem em pauta - depende do jogo de forças, ver quem pisca primeiro.
A mais pesada nuvem, vendo em perspectiva, está ligada à economia, mas a transcende em significância. É a obra mais decidida desse governo, que não pode ser atribuída a nenhuma herança, sendo a mais específica, original e violenta. Trata-se da violenta mudança do lugar do Brasil no mundo, dilapidando o respeito que o país e o povo brasileiro granjeou, e a própria soberania nacional. Se for considerado o alinhamento carnal com a estratégia norte-americana na luta por manter sua hegemonia mundial em declínio, e afastar o Brasil do âmbito do multilateralismo que fornece, notoriamente, a possibilidade de explorar caminhos próprios para os interesses nacionais, a situação é dramática.
Ainda há por vir o pacote das privatizações selvagens. Afora a disputa política e ideológica quanto ao papel do Estado nacional para um novo projeto de desenvolvimento, o fato é que o intento do governo se anuncia mais uma vez destrutivo e fiscalista, como vender a prataria da casa para comprar um marmitex. Bem vistas as coisas, vai na contramão do interesse nacional de gregos e troianos brasileiros.
Praticamente toda a mídia mundial respeitável lamenta pelo Brasil, desmoraliza Bolsonaro, sua grosseria autoritária ideologizada - só não acontece com a mídia nativa, apesar das exceções. Soma-se aí o atentado à cultura e às universidades, à educação vilipendiada como fator de emancipação e de futuro com igualdade de oportunidades, às ideias progressistas e iluministas, o trôpego novo conceito de direitos humanos, o racismo político expresso. Há que se considerar: é uma obra e tanto no desmonte da nação.
Como fazer então? São muitas e concomitantes as frentes de combate, pela Democracia, pela Soberania, pelos direitos sociais, humanos e civis, pelo resgate da nacionalidade. Mas, a primeira coisa que se coloca perante a esquerda, nessa complexidade, parece ser que cada um dos partidos da esquerda e centro-esquerda supere suas pequenas táticas, para dar lugar a uma grande tática em comum.
Ou seja, a coisa que precisa estar no centro da tela do radar é a unidade, essa a missão imediata. Unir amplas forças políticas, sociais, acadêmicas e intelectuais, de todos os matizes, de quantos se disponham a constituir um permanente de diálogo, desde a esquerda progressista política e social, até o pólo derrotado do neoliberalismo clássico, o liberal conservadorismo, as forças centristas à direita e à esquerda. Unidade de forças diversas, aos moldes das frentes antifascistas lideradas no século passado pela esquerda comunista, com um objetivo em comum pela Democracia.
Cabem todos contra os atentados ao Estado democrático de direito, contra o Estado policial, em defesa do Legislativo e da própria Alta Corte, pelas garantias fundamentais da Constituição. No seio dessas forças haverá também aqueles que combatem concomitantemente em defesa de uma outra agenda para o país e pelos interesses dos trabalhadores, e ela também será ampla, de outras formas.
A responsabilidade dos partidos e lideranças mais consequentes é enorme, como diz Renato Rabelo, em dar começo a esse grande empreendimento de unidade e amplitude. É preciso que eles e elas se falem uns com outros, mas sobretudo que saibam escutar-se, convergir em poucos pontos amplos e radicais em defesa da democracia e da retomada do pacto democrático para produzir uma mesa de unidade democrática formal.
As crises se sabe como começam, não se sabe como vêm o desfecho - várias alternativas estão na mesa, inclusive de que se arraste. Mas a ninguém é dado se iludir quanto a que, jogando parado, lhe caia a bola no colo pela lei da gravidade. É preciso prefigurar cenários, antecipar-se em protagonizar saídas.
Mais ainda que em 2018, quando críamos que unidos podíamos vencer as eleições, a unidade se impõe, é a bandeira justa da hora. Era (e é) o modo de dar novas esperanças ao povo. A esquerda tem os desafios de unir-se na ação imediata contra a agenda governamental, por esclarecer e mobilizar o povo com novas formas de trabalho de base; de unir-se em torno de um programa para o Brasil e não de interesses eleitorais mesmo que legítimos; e, por último, mas não em importância, de liderar a formação da larga frente democrática, sem o que se ficará nas pequenas táticas de sobrevivência ou de ilusões com o próprio umbigo.
Walter Sorretino é médico, vice-presidente nacional e secretário de Relações e Política Internacional do PCdoB.