"Precisamos, enquanto ainda temos tempo, impedir a destruição definitiva da ideia de Brasil e das capacidades do Estado brasileiro por todos aqueles que, nativos ou estrangeiros, querem ver a nós, brasileiros, incapacitados, dependentes e subjugados".
Por Daniel Kosinski*
Em meados do século 16, em “Os seis livros da República”, o francês Jean Bodin definiu a “soberania” como “o poder absoluto e perpétuo de uma República”. Ela seria o fundamento principal do exercício do poder, consistindo no “poder e autoridade de julgar ou de comandar”, condição que “não é limitada, nem em poder, nem em responsabilidade, nem por tempo determinado”. Por isso, “absolutamente soberano” seria apenas aquele que “não conhece nada maior que si, salvo Deus”, existindo em posição de supremacia em determinado território. E o “ponto principal da majestade soberana” consistiria principalmente em “dar lei aos súditos em geral sem o seu consentimento”, exercício cujas “verdadeiras marcas” seriam as de instituir pesos e medidas, a moeda e tributar os governados.
Já no século 20, o alemão Max Weber, no seu ensaio “A política como vocação”, afirmou que o Estado não se definia sociologicamente pelos seus fins, mas pelo meio específico que lhe era próprio, sendo “aquela comunidade humana que, dentro de determinado território (...) reivindica para si (com êxito) o monopólio da violência física legítima”. Era a razão pela qual o Estado era considerado “a única fonte do ‘direito’ ao uso da violência”.
Nas modernas constituições do Brasil e dos Estados Unidos vemos que as prerrogativas soberanas enumeradas por Bodin e o direito ao emprego “legítimo” da violência descrito por Weber foram estritamente atribuídos ao Estado nacional. Assim, os Estados modernos encontram na instituição e no emprego das armas e do dinheiro (e a da sua necessária contrapartida, a tributação) os seus dois principais meios de comando ou de exercício dos poderes executivos, aqueles que os permitem governar as sociedades. E as duas constituições o confirmam, na medida em que estabelecem com absoluta clareza as formas de controle civil, isto é, pelos parlamentos, sobre a sua utilização.
Sem embargo, nos últimos anos, temos presenciado no Brasil uma campanha insidiosa que questiona, na raiz, a legitimidade e a capacidade do Estado brasileiro para desempenhar essas funções quintessenciais, sem as quais um Estado não pode ser e agir como um Estado.
De um lado, vemos um candidato à Presidência da República propor como diretriz de governo legitimar o porte e o emprego de armas de fogo pelos cidadãos ditos “de bem”. Trata-se do mesmo personagem que, há alguns anos, propôs legalizar as milícias – essas, que ora subjugam e extorquem boa parte da população fluminense – como “solução” para a permanente crise de segurança pública vivida pelo seu estado.
Seguindo essa pista e supondo um cenário (de saída, catastrófico) no qual o referido vença a eleição e cumpra a sua promessa, é provável que, sob a justificativa de “prover a segurança pública”, grupos armados se organizem em todo o território nacional. Assim, legitimados pelo governo federal, não seria improvável que constituíssem governos locais e regionais paralelos, quem sabe, cada qual com seus objetivos e interesses materiais, sistemas de execução de Justiça e, quiçá, leis e tributos.
Com isso teríamos uma espécie de “feudalização”, em pleno século 21, do território brasileiro, bizarro cenário num país que, a despeito de todas as suas carências infraestruturais e reveses políticos, tem precisamente como seu principal patrimônio a preservação de notável unidade cultural e política sobre um território de dimensões continentais. Sem dúvidas, uma ótima oportunidade para agentes nacionais e estrangeiros interessados na fragilização do Estado brasileiro com vistas à apropriação dos nossos vastos recursos naturais.
Por outro lado, vemos reivindicações, por grupos ligados ao “mercado financeiro” e seus porta-vozes, de que é preciso tornar o Banco Central do Brasil “independente” do governo federal. Com isso, pretendem isolar (ainda mais) a administração monetária da realidade nacional, tornando o gerenciamento da inflação definitivamente desvinculado de outros parâmetros igualmente importantes para o bem-estar dos brasileiros, como os níveis de produção e emprego. Nesse caso, pouco importaria quem elegêssemos para a Presidência da República, pois o comando sobre o dinheiro já estaria definido por uma autoridade soberana paralela, constituindo-se o Banco Central como verdadeiro “Estado dentro do Estado”. Objetivo inconfesso de plutocratas que não querem uma moeda a serviço do país, mas um país a serviço da moeda.
Finalmente, sob a alegação de que “imposto é roubo”, também vem ganhando adesão a ideia de que a cobrança de impostos configura uma “usurpação”, como se, sem impostos e governos, fosse possível organizar uma sociedade, erigir uma nação. Mas esses que veiculam essa ideia (de todo fraudulenta) mal sabem, por ignorância, ou fingem não saber, por oportunismo, a importância dos impostos como mecanismo de instituição da validade das moedas nacionais, além de meio indispensável para promover a mobilização do trabalho nacional, um fato há muito reconhecido, entre outros, por Alexander Hamilton.
Sabemos que o Estado brasileiro tem inúmeros vícios e graves problemas. Nossos governos têm falhado miseravelmente em prover segurança pública, em construir uma estrutura tributária justa e racional e em retornar à população, principalmente a mais carente (e a mais tributada), os excedentes extraídos na forma de serviços públicos de qualidade. No entanto, a solução para a nossa crise não passa por enfraquecer ainda mais, ou mesmo destruir, as nossas capacidades estatais; pelo contrário, passa por fortalecê-las. Um governo sem soberania, que não comanda nem as armas nem o dinheiro e a tributação, não é um governo de fato. E em que pesem as muitas mazelas do nosso Estado, o que nos sobrará na sua ausência? Quem haverá de prover unidade, identidade, independência, estabilidade e bons serviços públicos aos brasileiros? Bandos armados espalhados pelo território, fornecedores independentes de “segurança” privada a quem melhor puder lhes pagar? Governos frágeis, incapacitados, de fachada, impedidos de administrar a moeda nacional e de tributar? O “mercado financeiro” e os interesses cosmopolitas dos seus agentes?
Em suma, é preciso resgatar, urgentemente e antes que seja tarde, a legitimidade e a capacidade do Estado brasileiro para desempenhar adequadamente as suas funções. Precisamos de um Estado que governe, organize e pacifique a conflagrada sociedade brasileira. E é preciso que o faça de maneira justa e eficaz, principalmente em favor dos nossos concidadãos mais necessitados e no contexto de um amplo projeto nacional de desenvolvimento.
Precisamos, enquanto ainda temos tempo, impedir a destruição definitiva da ideia de Brasil e das capacidades do Estado brasileiro por todos aqueles que, nativos ou estrangeiros, querem ver a nós, brasileiros, incapacitados, dependentes e subjugados. Se, por incapacidade ou omissão, falharmos nessa missão, correremos sério risco de deixarmos de ser uma nação. Então, nos reduziremos a uma bandeira, um hino e uma ficção inscrita nos mapas, meros símbolos de um “país do futuro” que jamais se concretizou.
*Daniel Kosinski é cientista político, servidor público federal e membro do Instituto da Brasilidade.
Fonte: Jornal do Brasil