A portaria que mudou as regras sobre classificação de trabalho escravo foi editada pelo Ministério do Trabalho ignorando recomendação de parecer jurídico da própria pasta. As alterações levaram apenas dois meses para serem gestadas no governo, e foram produzidas a partir de um pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) ao Ministério do Planejamento, que não tem relação direta com o tema. A portaria acabou sendo suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), mas até hoje não se tinha conhecimento sobre como o processo tramitou no governo.
No dia 10 de agosto, a Abrainc enviou ao ministro Dyogo de Oliveira um ofício pedindo mudanças nas normas do governo. A entidade alegou que o setor tem grande impacto na economia brasileira e vem sendo vítima de ações de fiscais do trabalho que confundem “ambiente de trabalho com condições precárias de higiene e saúde” com o trabalho análogo ao de escravo. A Abrainc já havia recorrido ao STF em 2014 para impedir a divulgação da lista suja, com nome das empresas flagradas em fiscalizações contra o trabalho escravo.
A entidade listou sete pedidos. Pelo menos quatro seriam contemplados dois meses depois pela portaria editada pelo Ministério do Trabalho. Entre eles a definição do conceito de "condição degradante" e a transferência para o ministro a decisão sobre inclusão de empresa na lista suja do trabalho escravo.
O pedido original da Abrainc foi analisado pela Secretária de Planejamento e Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento. O setor emitiu um parecer concordando com a possibilidade de alteração nas regras. “Em que pese a Lei 10.803 trazer as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo, para fins penais e criminais, esta condição é frequentemente confundida com o ambiente de trabalho em condições precárias de higiene e saúde, e esse desentendimento pode levar empresas a serem incluídas, a princípio indevidamente, no Cadastro de Empregadores. Nesse contexto, entidades do setor produtivo, como a Abrainc, defendem a necessidade de que a legislação deixe mais claro o que são, particularmente, “condições degradantes de trabalho”, a fim de orientar as ações de fiscalização, evitando margem excessiva de discricionariedade na interpretação da lei", diz parecer do Planejamento, obtido via Lei de Acesso à Informação. O texto conclui, no entanto, que o assunto era da competência do Ministério do Trabalho, para onde o pedido foi remetido no início de setembro.
No dia 11 de outubro, a consultoria jurídica do Ministério do Trabalho deu seu aval para a edição da nova portaria. Mas em três momentos no texto, o consultor-geral substituto de Assuntos de Direito Trabalhista, Francisco Moacir Barros, destacou que era preciso ouvir o setor envolvido diretamente na fiscalização de trabalho escravo antes de a portaria ser editada. Caso decidisse ignorar esse setor do ministério, a consultoria recomendava que fosse, então, produzida uma nota técnica por assessores do gabinete do ministro para justificar a edição da portaria. O processo do ministério não registra nenhuma manifestação técnica da assessoria do gabinete.
"Ressalte-se que a matéria noticiada nos autos é sensível e esses não se encontram instruídos com manifestação da área técnica administrativa competente, o que deverá ser oportunamente providenciado pelo gabinete do ministro", diz o parecer. Em outro trecho, o consultor volta a dizer que, por conta do "grau de sensibilidade social elevado" acredita que o tema tenha sido amplamente debatido, "especialmente entre os atores envolvidos". Ao final, ele repete: “reitere-se que deve ser considerada a necessidade da área técnica administrativa manifestar-se sobre a matéria, caso assim não se entenda, os autos deverão conter análise técnica-administrativa por parte da Assessoria Técnica do Gabinete do Ministro”. A portaria foi publicada no dia 16 de outubro no Diário Oficial sem a consulta prévia à área técnica.
Procurado o Ministério do Trabalho não se manifestou. A Abrainc não explicou diretamente porque procurou o Planejamento para tratar do tema trabalho escravo. Por meio de nota, a entidade sustentou que "mantém contato próximo com todos os ministérios, no intuito de colaborar com a tomada de decisões de interesse do setor e do país". "A Associação defende de forma resoluta o trabalho digno e adequado e se alinha sempre com constante melhoria das condições de trabalho. Entende que uma regulamentação adequada, clara e objetiva vem nesta direção, distinguindo as infrações trabalhistas do trabalho análogo ao escravo. Esta distinção é fundamental, já que permite que se dê foco ao seu combate, ao mesmo tempo que traz mais segurança aos investimentos de que o país tanto necessita", diz a nota da entidade.
Fonte: O Globo