Menos direitos e salários, mais batente. Resistência da Justiça do Trabalho cria incertezas
A nova lei trabalhista, assinada em julho pelo presidente Michel Temer, entra em vigor a partir deste sábado 11. É a mais profunda mudança no mercado de trabalho no País após oito décadas do legado de Getúlio Vargas, o criador da carteira profissional (1932), da Justiça do Trabalho (1941) e da CLT (1943).
As condições de vida e trabalho dos brasileiros têm tudo para piorar, enquanto são duvidosos os efeitos na abertura de vagas, grande justificativa governista e empresarial para a reforma. E para complicar as coisas, é certo que haverá uma batalha nos tribunais.
“A lei 13.467/2016 é ilegítima, nos sentidos formal e material”, diz a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), prenúncio de guerra nos tribunais.
A afirmação faz parte de um pacote de 125 enunciados aprovado em outubro pela entidade, na II Jornada do Direito Material e Processual do Trabalho, a reunir em Brasília cerca de 600 juízes, advogados trabalhistas e fiscais do trabalho. Uma espécie de roteiro crítico à nova lei, a servir de orientação para togados trabalhistas usarem em processos daqui para a frente.
Nos dois casos, para arrancar algo parecido com férias, 13o proporcional, FGTS, INSS, o brasileiro terá de ser bom de gogó, não terá a seu lado as garantias da carteira profissional e da CLT.
Outra novidade é a jornada de trabalho de 12 horas por dia, desde que com descanso de 36 horas em seguida. Segundo os enunciados da Anamatra, essa jornada não pode ser negociada individualmente, apenas via sindicato.
Terceirização total no setor público é outra inovação que os enunciados dizem que não pode ser aceita. E por aí vai.
“O Código de Processo Civil levou cinco anos de debates para ser alterado e a reforma, só alguns meses (sete, entre o envio do projeto pelo governo e a sanção da lei por Temer). O resultado foi uma lei ruim, com muitas deficiências, lacunas, inconstitucionalidades”, afirma o presidente da Anamatra, Guilherme Guimarães Feliciano. “Não sei se haverá mais juízes com os enunciados ou com a lei, mas certamente a lei vai parar no STF, a sociedade tem que ter paciência. Podemos levar até cinco anos para o assunto ser pacificado.”
No Supremo Tribunal Federal (STF), há quem tenha visão parecida com a da Anamatra. É o caso de Ricardo Lewandowski, que deve ter deixado horrorizada uma plateia montada pelo Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte, durante uma palestra em 4 de agosto sobre a reforma.
Para ele, permitir que acordo valha mais do que a lei, como faz a reforma, é deixar o trabalhador “à mercê dos efeitos perversos do capitalismo selvagem”, como nos tempos da Revolução Industrial no século XIX. Direitos como greve, jornada de trabalho limitada, salário mínimo, sindicalização, proteção à mulher e ao menor “não foram estabelecidos a partir de uma lógica apenas econômica, ou de mercado, mas para equilibrar a relação assimétrica entre o capital e o trabalho”.
Ao encerrar o discurso, Lewandowski deixou algumas perguntas. Por exemplo: a nova lei é compatível com um dos objetivos do País descrito na Constituição, o de “erradicar a pobreza a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”?
O STF já foi provocado a refletir sobre inconstitucionalidades da reforma, graças a uma ação movida em agosto pela Procuradoria Geral da República. “Para promover a denominada reforma trabalhista, com intensa desregulamentação da proteção social do trabalho, a Lei 13.467/2017 inseriu 96 disposições na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a maior parte delas com redução de direitos materiais dos trabalhadores”, diz a ação.
A PGR insurgiu-se particularmente contra dispositivos que desestimulam à busca da Justiça pelos trabalhadores. A nova lei impõe o pagamento de honorários advocatícios à parte que perde o processo.
A ação da Procuradoria caiu no STF com o juiz Luis Roberto Barroso. Que é um entusiasta da reforma. Em maio, ele fez uma palestra na Inglaterra com loas à proposta e até disse que o Brasil é campeão de processos trabalhistas devido à legislação.
Não seria o caso de Barroso declarar-se impedido de relatar o questionamento da PGR e passar o caso a um colega de Corte? Afinal, já tem opinião formada sobre o assunto.
Questões jurídicas à parte, qual será o efeito concreto da reforma no mercado de trabalho?
Um estudo de agosto feito por três economistas do Itaú estima que a reforma vai gerar 1,5 milhão de empregos e o desemprego, cair 1,4 ponto percentual. Animador? Não. Isso aí em quatro anos, não cobre nem as demissões da era Temer.
Quando o peemedebista assumiu o poder, em maio de 2016, o País tinha 11 milhões de desempregados. De lá para cá, as demissões continuaram aceleradas, e o número chegou ao recorde de 14 milhões em abril. Em setembro, último dado oficial disponível, eram 13 milhões. A queda, segundo o IBGE, decorre do avanço da informalidade, gênero estimulado pela reforma.
Para Clemente Ganz Lúcio, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sociais (Dieese), é difícil dizer ao certo o que veremos, mas dá para arriscar. “É provável que a renda do trabalhador caia”, diz.
Pior para a economia e o mercado interno. Com a finada CLT em vigor, a remuneração média no Brasil pulou de 1,3 mil reais mensais em 2001 para 2,1 mil reais em setembro passado, segundo a PNAD, do IBGE.
“A reforma vai causar um problema econômico, ao tirar do trabalhador a previsibilidade de sua remuneração. Ele vai entrar numa loja para comprar e não terá como comprovar sua renda”, diz o presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Vagner Freitas. “Precisamos acumular força para revogar essa reforma.”
Pelo observado em outros países, afirma Ganz Lúcio, outra tendência é mudar o perfil das vagas. Uma substituição das seguras (carteira assinada) pelas de tempo parcial (intermitentes, home office etc). Precarização, em suma, algo que pode dar as caras já no Natal.
Essa precarização aconteceu na Espanha, pátria de reformas em 2010 e 2011 apontada por Temer como inspiração. Em um estudo de 2013, o economista José Manual Lago Peñas, da Fundação 1o de Maio, comparou o que ocorreu no emprego na recessão local de 2009 e na de 2012, períodos pré e pós reforma.
No primeiro ano, 815 mil assalariados e 396 mil autônomos foram mandados embora. No segundo, 904 mil assalariados. Já os autônomos subiram 54 mil. Outra constatação: as reformas aceleraram as demissões. Na recessão de -3,7% de 2009, elas vitimaram 1,2 milhão de pessoas. Na de -1,4% de 2012, 850 mil, proporcionalmente mais.
Na Europa, berço da primeira grande lei trabalhista, o Factory Act inglês de 1833, a vetar emprego a menores de 9 anos e limitar a 12 horas diárias a jornada, vários países embarcaram em reformas após a crise global de 2008. Deu no quê? O desemprego de 7,6% em 2008 fechou na casa de 10% em 2015 e 2016.
Números à parte, a reforma induz uma importante mudança qualitativa no País. “É o fim do trabalho como conhecemos, da sociedade salarial iniciada na década de 1930”, teoriza Márcio Pochmann, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Vão sair de cena os assalariados com carteira assinada, e entrar os PJs, os autônomos, os “empreendedores”.
Uma transformação, diz o economista, já decorrente do recuo do peso da indústria no PIB, hoje de 10% (era de quase 30% nos anos 1970), e do avanço do setor de serviços. “A sociedade industrial apontava para uma ‘medianização’. A reforma vai consolidar um mundo do trabalho extremamente polarizado, ao esvaziar os postos intermediários. Adeus, classe média.”
Um fenômeno, afirma Pochmann, parido pelas multinacionais, que no passado já foram fonte de empregos cobiçados e hoje só querem saber de se instalar onde pagam menos. “O Brasil aderiu a um sistema neocolonial, de menos salários."
FONTE:CARTACAPITAL