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A probabilidade de um Tratado de Livre Comércio entre o Uruguai e a China pode forçar o Mercosul a uma modernização ou a uma ruptura. O governo uruguaio anunciou recentemente "avanços concretos" nas discussões com Pequim e acrescentou que também negocia acordos com outros países. A Argentina e o Paraguai não gostaram. O Brasil preferiu o silêncio, mas é a favor de uma flexibilização das regras que atualmente proíbem negociações comerciais de forma individual.
Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires
A revelação de que algo proibido pelas atuais regras do Mercosul estava em curso colocou o bloco numa rota de colisão entre os seus quatro membros fundadores, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
Há uma semana, o presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, anunciou "avanços concretos" para uma negociação comercial com a China por fora do Mercosul. No fim de semana, o chanceler Francisco Bustillo disse que Montevidéu também discute acordos com outros países e que "em breve, poderia fazer anúncios".
De acordo com as regras do bloco, nenhum país pode concluir tratados comerciais individualmente. Todas as negociações comerciais precisam ser em bloco e cada decisão requer consenso entre os membros. Na prática, portanto, um país pode exercer o poder de veto.
O rompimento dessa regra de ouro deixa o Mercosul sob risco de cisão, caso algum dos seus membros não concorde com a negociação. E essa possibilidade apareceu no horizonte.
"Não está vedada uma negociação entre um membro do Mercosul com outro Estado nem um acordo com terceiros em questões que não sejam tarifárias. Porém, um Tratado de Livre Comércio (TLC) significa entrar num terreno proibido", indica à RFI o consultor de negócios internacionais Marcelo Elizondo, um dos maiores especialistas sobre o Mercosul.
Reações distintas
A posição do Brasil, por enquanto, é a do silêncio, mas o governo brasileiro já deu sinais de ser favorável a uma flexibilização das normas do Mercosul. Em 8 de julho, quando o Brasil assumiu a atual presidência rotativa do bloco, o Itamaraty publicou que "o Brasil quer uma agenda de modernização do Mercosul".
"O Brasil prosseguirá os esforços para levar adiante a agenda de modernização do Mercosul, para transformar o bloco num instrumento efetivo de competitividade e de melhor inserção regional e global", apontou o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, em nota.
Porém, nem a Argentina nem o Paraguai concordam com uma flexibilização das atuais regras porque entendem que seria o fim do Mercosul como união alfandegária.
A Argentina foi a primeira a se manifestar sobre o repentino anúncio do Uruguai de um provável tratado comercial com a China. O ministro do Desenvolvimento Produtivo, Matías Kulfas, deixou claro que o Uruguai terá de optar: "Ou a China ou o Mercosul".
Já o chanceler paraguaio disse que seu país acompanha essa discussão com preocupação. "O Paraguai observa com inquietação essa decisão do governo uruguaio", afirmou o chanceler Euclides Acevedo.
Queda de braço sobre o modelo do bloco
"O Mercosul entrou nessa queda de braço: assinar acordos com terceiros países em conjunto ou flexibilizar as regras para permitir acordos individuais. O bloco está em plena discussão sobre o seu futuro", aponta o analista Marcelo Elizondo. "O que o Uruguai anunciou está em sintonia com o aumento do comércio mundial", avalia.
A atual integração no mundo requer um bloco com acordos comerciais com diversos países, mas o Mercosul, nos seus 30 anos de existência, não saiu da vizinhança. Dos 20 blocos de integração no mundo, o Mercosul é o que menos comércio exterior tem em relação ao seu produto interno bruto. A relação do Mercosul é de 14,9%, enquanto a média no mundo é de 33%", compara.
Horizonte de colisão
A China e o Uruguai demonstraram estar com pressa. Pequim propôs, e Montevidéu aceitou, que um estudo para a viabilidade de um acordo termine até o final deste ano. A partir disso, o Uruguai começaria formalmente negociações por um TLC. As negociações não têm prazo, mas poderiam estar concluídas em dois anos.
No entanto, além do protecionismo argentino, existe outro inconveniente no bloco: o Paraguai reconhece a independência de Taiwan, país com o qual, historicamente, mantém um sólido vínculo. A China não aceita relações com países que reconheçam a independência de Taiwan.
Basicamente, a China compra dos países do Mercosul matérias-primas, minério e produção agropecuária e vende produtos industrializados. O Uruguai não tem indústrias a proteger e uma fragmentação do Mercosul beneficiaria a China.
Para evitar uma cisão, existem três caminhos: o Uruguai poderia incorporar todos os membros do Mercosul no acordo ou poderia usar a proposta como elemento de pressão para uma mudança nas regras do Mercosul. Nem a Argentina nem o Paraguai parecem dispostos a aceitar essas hipóteses.
Uma terceira via seria um sistema de velocidades diferentes no qual um país poderia entrar num tratado anos depois, num acordo fechado por algum dos seus membros. Ou seja: prazos diferentes de entrada em vigor para cada país.
Qualquer uma dessas alternativas antecipa muita tensão nos próximos meses.
"Os próximos meses serão de muita tensão com o Brasil e o Uruguai a pressionar por uma abertura do Mercosul, e com a Argentina a resistir por meio de seu poder de veto. Do sucesso desse confronto sairá um Mercosul mais fortalecido ou mais enfraquecido", avalia Marcelo Elizondo.Estratégias políticas
O Mercosul vive o choque ideológico entre protecionismo e livre comércio que divide os seus membros. A ordem das respectivas diplomacias é não abordar o assunto na imprensa, mas cada país tem a sua estratégia.
O Uruguai quer acelerar o debate porque atualmente conta com um apoio inédito do Brasil para uma flexibilização das normas do Mercosul. A atual posição de Brasília pode virar com uma eventual mudança de governo depois das eleições de 2022. A Argentina quer ganhar tempo para qualquer negociação justamente porque conta com uma mudança de governo no Brasil que isole as pretensões do Uruguai. Já o Paraguai tenta um equilíbrio entre a postura protecionista da Argentina e a de abertura do Brasil e do Uruguai.
"Estamos diante de uma encruzilhada: se o bloco ficar como está, haverá um custo. Para mudar, precisará de consenso porque forçar as normas não é a maneira de modernizar o bloco. Será preciso a melhor diplomacia para conseguir acordos", conclui o especialista Marcelo Elizondo.
FONTE: RFI