Foto: Crédito: Diego Baravelli/MInfra
'Nunca vi coisa parecida', diz presidente da Rede Mundial Oceânica da A.P. Moller-Maersk
Ao largo da costa de Los Angeles, mais de duas dúzias de navios porta-contêineres repletos de bicicletas de exercício, produtos eletrônicos e outras importações de alta demanda passam até duas semanas à espera de vagas para atracar.
Em Kansas City, agricultores enfrentam dificuldades para enviar soja a compradores na Ásia. Na China, móveis destinados à América do Norte se empilham nas fábricas.
Ao redor do planeta, a pandemia desordenou o comércio internacional em grau extraordinário, elevando o custo do envio de produtos e criando um novo desafio para a recuperação da economia mundial. O vírus perturbou a coreografia do transporte de cargas de um para outro continente.
No centro da tempestade está o contêiner de navegação, o ingrediente básico da globalização.
Americanos presos em casa dispararam um dilúvio de encomendas a fábricas na China, e boa parte delas são transportadas através do Pacífico em imensas pilhas de contêineres a bordo de navios gigantescos. Enquanto os domicílios dos Estados Unidos transformavam quartos em escritórios e porões em academias de ginástica, a demanda por transporte marítimo ultrapassou a disponibilidade de contêineres na Ásia, o que resultou em escassez delas por lá e em grandes pilhas de caixas metálicas para transporte paradas nos portos americanos.
Contêineres transportaram milhões de máscaras a países da África e da América do Sul no começo da pandemia e continuam lá, vazios e inativos, porque as companhias de navegação concentraram suas embarcações nas rotas mais populares –aquelas que ligam a Ásia à América do Norte e Europa.
E nos portos que os navios visitam, transportando bens para descarga, eles muitas vezes perdem dias em congestionamentos de tráfego naval. A pandemia e suas restrições limitaram a disponibilidade de estivadores e motoristas de caminhão, causando atrasos na recepção de cargas, do sul da Califórnia a Cingapura. Cada contêiner que não pode ser descarregado em um determinado lugar é um contêiner que não poderá ser carregado em outro local.
“Nunca vi coisa parecida”, disse Lars Mikael Jensen, presidente da Rede Mundial Oceânica da A.P. Moller-Maersk, a maior companhia de transporte marítimo do planeta. “Todos os elos da cadeia de suprimento estão distendidos. Os navios, os caminhões, os armazéns”.
Economias de todo o planeta estão absorvendo os efeitos derivados da confusão nos mares. Os custos mais altos de transporte dos cereais e da soja americanos através do Pacífico ameaçam causar aumento nos preços dos alimentos na Ásia.
Há contêineres empilhados nos portos da Austrália e Nova Zelândia; no porto indiano de Kolkota, os contêineres são escassos, forçando os fabricantes de componentes eletrônicos a enviar suas mercadorias em uma viagem de mais de 1,5 mil quilômetros ao porto de Mumbai, no oeste do país, onde há mais contêineres disponíveis.
Os exportadores de arroz da Tailândia, Vietnã e Camboja deixaram de realizar alguns embarques para a América do Norte devido à impossibilidade de obter contêineres.
O caos nos mares provou ser uma bonança para empresas de navegação como a Maersk, que em fevereiro mencionou preços recorde para os fretes, ao anunciar US$ 2,7 bilhões em lucros anteriores aos impostos no trimestre final de 2020.
Ninguém sabe por quanto tempo a desordem vai perdurar, ainda que alguns especialistas presumam que os contêineres continuarão escassos pelo restante do ano, enquanto as fábricas que os produzem – quase todas localizadas na China –correm para acompanhar a demanda acumulada.
Desse que começaram a ser utilizados, em 1956, os contêineres revolucionaram o comércio internacional ao permitir que bens sejam carregados em receptáculos de tamanho padrão para transporte por caminhões e trens –o que fez com que as distâncias planetárias na prática encolhessem.
Os contêineres são a forma pela qual telas planas para eletrônicos fabricadas na Coreia do Sul são transportadas à China para uso em smartphones e laptops, e pela qual esses aparelhos, montados, são embarcados para o mercado dos Estados Unidos, do outro lado do Pacífico.
Qualquer complicação significa atraso e custo adicional para alguém. A pandemia desordenou todas as partes da jornada.
“Todo mundo quer tudo”, disse Akhil Nair, vice-presidente de gestão mundial de transporte da SEKO Logistics, de Hong Kong. “A infraestrutura não consegue acompanhar”.
A DESORDEM COMEÇA ASSIM
Mais de uma década atrás, durante a crise financeira mundial, as companhias de navegação sofreram um abalo severo em seus negócios.
Quando um misterioso vírus emergiu na China no começo do ano passado –levando o governo do país a fechar as fábricas a fim de conter sua difusão–, o setor de navegação se preparou para uma repetição dos problemas. As companhias reduziram seus serviços, e desativaram temporariamente muitos de seus navios.
Mas mesmo em meio à desaceleração econômica, as encomendas de equipamento de proteção como máscaras e trajes cirúrgicos usados pelo pessoal médico de linha de frente, boa parte do qual fabricado na China, dispararam. As fábricas chinesas aceleraram sua produção, e navios porta- contêineres transportaram seus produtos a destinos em todo o planeta.
Diferentemente da crise financeira, quando a recuperação econômica demorou anos a ganhar impulso, as fábricas chinesas voltaram a produzir furiosamente no segundo semestre de 2020, o que resultou em demanda robusta por transporte marítimo.
E enquanto as companhias de navegação colocavam em ação todas as embarcações capazes de flutuar, elas decidiram se concentrar nas rotas de maior demanda –especialmente as que ligam a China à América do Norte,
A pressão cresceu quando os americanos alteraram seus padrões de consumo. Privados de férias e de refeições em restaurantes, eles adquiriram consoles de videogames e equipamentos para a cozinha. Equiparam suas casas para poderem trabalhar remotamente e para que seus filhos pudessem estudar a distância.
Os embarques de equipamentos de exercício enviados em contêineres da Ásia para a América do Norte mais que dobraram entre setembro e novembro, ante o período em 2019, de acordo com uma análise da Sea-Intelligence, uma empresa de pesquisa sediada em Copenhagen, na Dinamarca. Os embarques de fogões, fornos e equipamentos de culinária quase dobraram, no mesmo período. E os de desinfetantes tiveram alta de 6.800%.
“Todas as coisas que registraram crescimento foram induzidas basicamente pela pandemia”, disse Alan Murphy, fundador do grupo de pesquisa.
Em termos gerais, o volume de comércio internacional caiu em apenas 1% em 2020, ante o ano anterior. Mas isso não reflete como o ano transcorreu – com uma queda de mais de 12% em abril e maio, seguida por uma reversão igualmente dramática. O sistema não foi capaz de se ajustar, e os contêineres terminaram ficando no lugar errado, o que elevou os preços do transporte marítimo a picos extraordinários.
A Baum-Essex, companhia dirigida por Peter Baum em Nova York, usa fábricas na China e no Sudeste da Ásia para produzir guarda-chuvas vendidos na cadeia de supermercados Costco, sacolas de algodão vendidas pela rede Walmart e produtos de cerâmica vendidos na rede de varejo Bed Bath & Beyond. Cerca de seis meses atrás, ele pagava US$ 2,5 mil pelo transporte de um contêiner de 40 pés (12 metros) ao sul da Califórnia.
“Recentemente, pagamos entre US$ 6 mil e US$ 7 mil”, ele disse. “É o preço de frete mais alto que já vi em 45 ano no negócio”.
No começo de setembro, ele teve de esperar 90 dias para conseguir espaço em um navio para um contêiner lotado de cadeiras e mesas de vime.
Outro importador americano, a Highline United, que importa sapatos femininos da China e de Hong Kong para marcas como a Ash e Isaac Mizrahi, vem pagando mais de cinco vezes do que o preço normal, pelas suas cargas.
“É uma questão clássica de oferta e procura”, disse Kim Bradley, a vice-presidente de operações da empresa, sediada em Dedham, Massachusetts.
TRÁFEGO CONGESTIONADO NOS PORTOS LOTADOS DA CALIFÓRNIA
Nos portos gêmeos de Los Angeles e da vizinha Long Beach, a descarga foi retardada pela escassez de estivadores e de motoristas de caminhão, já que alguns deles foram contagiados pelo coronavírus e outros tiveram de passar por quarentenas.
“Antecipa-se que o acúmulo de volume deva continuar até o começo do terceiro trimestre”, disse Gene Seroka, o diretor do porto de Los Angeles, em uma reunião recente do conselho do porto.
Os navios que esperam ao largo de Los Angeles ocuparam todos os espaços para atracar disponíveis, e estão recorrendo às chamadas áreas de deriva –zonas onde eles flutuam sem ancorar, como aviões circulando no ar por sobre aeroportos lotados.
Grandes marcas de bens de consumo –da fabricante de artigos esportivos Under Armour à fabricante de brinquedos e jogos Hasbro– vêm enfrentando gargalos no transporte marítimo.
A Peloton menciona o congestionamento nos portos como causa no atraso das entregas de suas bicicletas estacionárias de alto preço. Para encurtar o tempo de espera, a empresa delineou planos para investir US$ 100 milhões em transporte aéreo e transporte marítimo expresso.
Mas mesmo em períodos normais, o preço do transporte aéreo é cerca de oito vezes mais alto que o do transporte marítimo. A maior parte da carga aérea é transportada nos porões de jatos de passageiros. Com a restrição severa nas viagens aéreas, o espaço para carga disponível também encolheu.
Algumas empresas de transporte alteraram suas rotas, parando em Oakland, 650 quilômetros ao norte, antes de prosseguir para Los Angeles. Mas os contêineres são empilhados nos navios em configurações determinadas pelo seu destino. Uma mudança repentina de planos significa a necessidade de mover as pilhas para encontrar os contêineres certos.
E o porto de Oakland está enfrentado seus problemas com a pandemia. Os estivadores estão em casa cuidando de filhos que não podem ir à escola, disse Bryan Brandes, o diretor marítimo do porto.
“Em épocas normas, os navios entram direto em Oakland”, disse Brandes. “No momento, temos sempre entre sete e 11 navios à espera de espaço para atracar”.
Contêineres vazios estão sendo transportados de volta para a Ásia
A disfunção na costa oeste dos Estados Unidos causou problemas a milhares de quilômetros de distância.
A Scoular, uma das maiores companhias de exportação de produtos agrícolas dos Estados Unidos, transporta soja e cereais em contêineres, com carga em terminais como Chicago e Kansas City e transferência via ferrovia para portos do Pacífico, a caminho da Ásia.
Tendo em vista os preços que os contêineres vêm atingindo na Ásia, as transportadoras têm cada vez mais descarregado os receptáculos na Califórnia e os embarcado imediatamente de volta nos navios, sem esperar para carregar grãos ou outras exportações americanas. Isso deixou companhias como a Scoular com dificuldades para transportar suas exportações.
Os atrasos nos portos em muitos casos forçam a transferência de contêineres a outros navios, o que força a empresa a alterar toda a sua documentação alfandegária – mais uma causa de atraso.
“É a confiabilidade do cronograma que é um problema”, disse Sean Healy, diretor de relações com transportadoras da Scoular. “E é um problema mundial”.
Ninguém sabe como isso vai terminar
Nas últimas semanas, as companhias de transporte começaram a enviar agressivamente contêineres de volta para a Ásia, o que eleva a disponibilidade deles lá, de acordo com dados da Container xChange, uma consultoria de Hamburgo, Alemanha.
Alguns especialistas presumem que à medida que a vacinação avance e a vida retorne ao normal, os americanos voltarão a alterar seus padrões de gastos – as compras de produtos serão de novo substituídas pelo consumo de experiências -, o que reduzirá a necessidade de contêineres.
Mas mesmo que isso de fato aconteça, os varejistas terão de começar a formar estoques para a temporada de festas e a alta de consumo que ela traz.
O plano de estímulo que está sendo debatido no Congresso americano pode gerar empregos que causem mais uma onda de consumo, quando pessoas que deixarem de estar desempregadas substituírem aparelhos velhos e comprarem roupas novas.
“Pode existir todo um subconjunto de outros consumidores que não vêm sendo capazes de consumir”, disse Michael Brown, analista de contêineres na KBW, de Nova York. “Existe o potencial de que a escassez continue por ainda algum tempo”.
Tradução de Paulo Migliacci
FONTES: FOLHA DE S.PAULO/THE NEW YORK TIMES