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Ministério Público já havia denunciado, há mais de dez anos, irregularidades nas embarcações

Meire Reis estava assistindo ao telejornal da televisão nesta quarta-feira pela noite quando se deparou com a reportagem sobre o naufrágio de uma lancha de passageiros no rio Xingu, no Pará, que deixou 21 mortos e um número ainda incerto de desaparecidos. Impressionada, Meire, uma mulher de 53 anos da Bahia, perguntou a seu marido como deveria reagir em um caso similar. Nesta quinta-feira, como todos os dias, ela pegou a lancha que une a Ilha de Itaparica a Salvador, atravessando a Baía de Todos os Santos. Pouco depois, ficou na mesma situação que horas antes havia assistido como simples espectadora de televisão. "Hoje eu estou viva e salva graças a ele [seu marido], ao que ele me ensinou. Tudo que ele me ensinou foi o que eu fiz", contou ao jornal Correio da Bahia. Não tiveram a mesma destreza, ou a mesma sorte, outras 18 pessoas que viajavam com ela na embarcação Cavalo Marinho I, que pereceram afogadas após a lancha virar, 10 minutos depois de ter zarpado.

As duas tragédias em menos de 36 horas comoveram o Brasil. Em ambos os casos, há grandes evidências de que as embarcações não tinham as condições necessárias de segurança. No acidente do Pará, a lancha nem dispunha de licença para levar passageiros e já havia sido notificada. Por sua vez, o Ministério Público da Bahia, em nota divulgada na noite desta quinta-feira, denunciou que há mais de dez anos tinha alertado "sobre inúmeras irregularidades no transporte de passageiros pelas embarcações que colocavam em risco, diariamente, a segurança de centenas de pessoas". Em 2014, a promotora da Justiça do Consumidor, Joseane Suzart, solicitou medidas como a reforma dos terminais e das embarcações ou a renovação dos coletes salva-vidas. Essas ações "ainda aguardam decisão judicial", desabafou o Ministério Público baiano.

O presidente da República, Michel Temer, depois de lamentar os fatos e manifestar a sua "solidariedade com as famílias das vítimas" prometeu que "as providências para apurar as causas dos acidentes e punir os responsáveis estão sendo tomadas, em todas as três esferas de governo". O Comando do 2º Distrito Naval, sediado em Salvador, afirmou em nota que serão instaurados dois inquéritos, um para apurar o que aconteceu e outro, administrativo, para investigar causas, circunstâncias e responsabilidades do acidente. O diretor adjunto do Departamento de Polícia Metropolitana, Giovanni Iran, afirmou que a Polícia Civil também abriu inquérito para apurar as causas do naufrágio.

Todos os dias Meire Reis pegava uma lancha para atravessar a Baía de Todos os Santos, na ilha de Itaparica, até Salvador, onde trabalha como administradora de condomínio. Quando, na manhã desta quinta-feira, ainda com as imagens do naufrágio do dia anterior na mente,  viu que para a travessia o barco disponível era o Cavalo Marinho I, esteve na beira de ficar em terra. "Eu mesma ia desistir quando eu vi que era a Cavalo Marinho. Eu pensei: não vou. Ficaram mais ou menos oito ou nove pessoas que quando viram que era a Cavalo Marinho desistiram porque é a pior embarcação que tem", contou ao jornal local. "Eu não sei dizer o que aconteceu. Eu já atravessei esse mar com vento bem maior e não aconteceu isso. A embarcação é a pior possível que existe. Para você ter uma ideia, ela, quando está encostada lá no normal, já fica toda torta".

A bordo da Cavalo Marinho I viajavam 133 pessoas, 129 passageiros e quatro tripulantes, e, segundo a Associação de Transportadores Marítimos da Baía, tinha capacidade para 160 pessoas. Em um primeiro cálculo, as autoridades baianas informaram pela manhã o número de 23 mortos, embora o tenham baixado à tarde para 18, entre eles um bebê de seis meses. A Cavalo Marinho I virou no início da travessia e muitos dos passageiros caíram na água. Meire Reis seguiu as dicas de seu marido e conseguiu se afastar do barco. "Eu estava na parte por onde o barco virou. Eu estava sentada e o barco virou com o povo que estava do lado de lá e eu fiquei presa", disse. "Eu bati muito a cabeça para poder sair, mas consegui sair. Primeiro foi Deus e depois eu fiz aquilo que Deus mandou ele [o marido] me ensinar".

Após a lancha virar, foi jogada pelo mar contra um recife. Pescadores e embarcações particulares que chegavam ao local depois de saberem do naufrágio, foram os primeiros a resgatar sobreviventes. Mais tarde chegaram navios e mergulhadores da Marinha brasileira.

Do naufrágio da quarta-feira no rio Xingu, no Pará, sequer se sabe exatamente o número de vítimas.  Por enquanto foram encontrados 21 mortos e resgatadas 23. O dono da embarcação assegura que viajavam a bordo umas 48 pessoas, mas não existe certeza total sobre a cifra. De acordo com a Agência Estadual de Regulação e Controle de Serviços Públicos do Pará (Arcon), a embarcação, Capitão Ribeiro, não estava legalizada para fazer o transporte de passageiros e não tinha registro. A empresa dona do barco, Almeida e Ribeiro Navegação LTDA, havia sido notificada pelos oficiais da Arcon no último dia 5 de junho, disse o Governo do Estado.

O acidente ocorreu às 21.00 horas da terça-feira entre os municípios de Porto de Moz e Senador José Porfírio, na localidade de Ponta Negra. A embarcação saiu do município de Santarém na noite de segunda-feira com destino à Vitória do Xingu. No horário do acidente, acontecia uma tempestade e muitos passageiros informaram à polícia que o barco foi atingido por uma tromba d’água. “A tripulação disse ter visto, no horizonte, algo com o formato de um funil, acompanhado de muita chuva e vento forte, e que teria pego o barco pela popa e o afundado. De acordo com os relatos, a embarcação girou e afundou em seguida”, informou à Agência Pará o delegado de Porto de Moz, Elcio de Deus.

Acidentes no Brasil

Entre 2000 e 2015, 1.327 pessoas morreram no Brasil em acidentes com embarcações, segundo dados tabulados pelo EL PAÍS no Datasus, sistema de informações do Sistema Único de Saúde brasileiro. Do total, 222 tinham até nove anos e 25 bebês que não tinham completado o primeiro ano de vida. Os dados de 2015 são os últimos disponibilizados pelo órgão e consideram as categorias "acidente com embarcação causando afogamento" ou "submersão e acidente com embarcação causando outro tipo de traumatismo".

No Pará, morreram 219 pessoas no período referido, um dado que coloca o Estado na segunda posição em número de mortos em acidentes do tipo, atrás do Amazonas (410). Juntos, os dois Estados amazônicos contabilizam 47% dos óbitos causados por acidentes com barcos neste período. A Bahia, onde morreram 23 pessoas nesta quinta-feira, havia registrado 41 óbitos entre 2000 e 2015.

FONTE: EL PAÍS