IMAGEM: SINTRINAL
Mais de 225 engenheiros e outros trabalhadores do Google formaram um sindicato, anunciou a organização na segunda-feira (4), coroando anos de ativismo em uma das maiores companhias do mundo e abrindo uma rara porta para organização de trabalhadores no Vale do Silício, que se opõe fortemente à sindicalização.
A criação de um sindicato é coisa rara no setor de tecnologia, que há muito tempo resiste aos esforços para organizar sua força de trabalho, que em geral ocupa postos de colarinho branco. A decisão segue a crescente demanda cada vez mais firmes de trabalhadores do Google por reformas nas normas da empresa quanto a remuneração, assédio, e ética, e deve gerar tensões mais intensas com a direção da companhia.
O novo sindicato, chamado de União dos Trabalhadores da Alphabet, por conta do nome da empresa controladora do grupo, Alphabet, foi organizado em segredo durante quase um ano, e elegeu sua liderança no mês passado. A organização se afiliou ao sindicato CWA (Communication Workers of America), que representa trabalhadores de telecomunicações e mídia nos Estados Unidos e no Canadá.
Mas diferentemente de um sindicato tradicional, que exige que os empregadores negociem contratos coletivos de trabalho, a nova organização é uma “união minoritária”, que representa apenas uma fração dos 260 mil empregados e prestadores de serviços de tempo integral na companhia. Os trabalhadores disseram que a criação do sindicato representava primordialmente um esforço para dar estrutura e longevidade ao ativismo no Google, e não uma campanha de negociação por um contrato coletivo.
Chewy Shaw, engenheiro do Google em San Francisco e vice-presidente do conselho de liderança do sindicato, disse que a organização era um instrumento necessário a fim de pressionar os gestores, para que os trabalhadores possam forçar mudanças nas práticas trabalhistas.
“Nossos objetivos vão além de questões como a da remuneração. Temos causas muito mais amplas”, ele disse. “E vivemos um momento em que um sindicato é a resposta a esses problemas”.
Em resposta, Kara Silverstein, diretora de operações de pessoal do Google, disse que “sempre trabalhamos com afinco para criar um ambiente de trabalho positivo e compensador para nossa força de trabalho. E nossos trabalhadores evidentemente têm direitos trabalhistas que apoiamos. Mas, como sempre fizemos, continuaremos a nos engajar diretamente com todos os nossos empregados”.
O novo sindicato é a mais clara indicação da grande penetração que o ativismo trabalhista conseguiu no Vale do Silício nos últimos anos. No passado, os engenheiros de software e outros profissionais em geral se mantinham silenciosos sobre questões sociais e políticas, mas agora, trabalhadores da Amazon, Salesforce, Pinterest e outros passaram a se pronunciar mais sobre assuntos como diversidade, discriminação salarial e assédio sexual.
E em nenhuma outra companhia essas vozes se fizeram ouvir com mais clareza do que no Google. Em 2018, mais de 20 mil trabalhadores realizaram uma paralisação a fim de protestar contra as normas da empresa sobre assédio sexual. Outros se opuseram a decisões de negócios que consideravam antiéticas, como a de desenvolver sistemas de inteligência artificial para o Departamento da Defesa e tecnologia para uso pelo Serviço de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos.
Mesmo assim, sindicatos não conseguiram ganhar empuxo anteriormente no Vale do Silício. Muitos trabalhadores da tecnologia os rejeitavam, afirmando que as organizações trabalhistas se concentram em questões como os salários –que não são uma grande preocupação no setor de tecnologia– e não estão equipados para lidar com as preocupações deles sobre ética e o papel da tecnologia na sociedade. Os organizadores trabalhistas também encontraram obstáculos para unificar as imensas forças de trabalho das empresas de tecnologia, espalhadas por todo o planeta.
Apenas alguns pequenos esforços de sindicalização conseguiram sucesso no setor de tecnologia. Os empregados do site de crowdfunding Kickstarter e da plataforma de desenvolvimento de apps Glitch se sindicalizaram no ano passado, e um pequeno grupo de prestadores de serviços em um escritório do Google em Pittsburgh formou um sindicato em 2019. Milhares de trabalhadores de um armazém da Amazon no Alabama devem votar sobre a sindicalização da unidade, dentro de alguns meses.
“Há quem queira acreditar que criar uma organização trabalhista no setor de tecnologia é completamente impossível”, disse Sara Steffens, tesoureira do CWA. “Se não tivermos sindicatos no setor de tecnologia, o que isso diz sobre nosso país? Esse é um dos motivos para que, do ponto de vista do CWA, consideremos essa tarefa como prioridade”.
Veena Dubal, professora de Direito no Hastings College of Law, Universidade da Califórnia, disse que o sindicato do Google era “uma experiência poderosa” porque levava a sindicalização a uma grande empresa de tecnologia e superava as barreiras que até agora haviam impedido esse tipo de organização.
“Caso o sindicato cresça –o que o Google fará todo o possível para impedir–, isso pode ter imenso impacto não só para os trabalhadores mas sobre questões mais amplas em que todos estamos pensando, como o poder dos setor de tecnologia na sociedade”, ela disse.
O sindicato deve criar tensões entre os engenheiros do Google, que trabalham no desenvolvimento de carros autoguiados, inteligência artificial e sistemas de buscas na internet, e a direção da companhia.
Sundar Pinchai, o presidente-executivo do Google, e outros dirigentes da empresa tentaram se adaptar a uma força de trabalho cada vez mais ativista –mas tomaram diversas decisões dúbias.
No mês passado, representantes do governo federal determinaram que o Google demitiu dois trabalhadores sem justa causa por eles protestarem contra a colaboração entre a empresa e as autoridades de imigração, em 2019. Timnit Gebru, uma mulher negra que é uma pesquisadora respeitada no campo da inteligência artificial, também declarou no mês passado que o Google a demitiu por ela ter criticado a postura da companhia com relação à contratação de minorias, e os vieses incorporados aos seus sistemas de inteligência artificial. A saída de Gebru gerou uma tempestade de críticas sobre o tratamento do Google aos empregados minoritários.
“Essas companhias não se conformam que exista mesmo que um grupo pequeno de pessoas dispostas a dizer que trabalham no Google mas defendem um ponto de vista diferente”, disse Nelson Lichtenstein, diretor do Centro do Estudo do Trabalho, Força de Trabalho e Democracia na Universidade da Califórnia em Santa Barbara. “O Google é bem capaz de encontrar sucesso em seus esforços para dizimar qualquer organização que emerja”.
A União dos Trabalhadores da Alphabet, que representa empregados radicados no Vale do Silício e em cidades como Cambridge (Massachusetts) e Seattle, oferece proteção e recursos aos trabalhadores que aderirem. Aqueles que optarem por se tornar membros contribuirão com 1% de sua remuneração ao sindicato, para bancar seus esforços.
Ao longo dos últimos 12 meses, o CWA pressionou pela sindicalização dos empregados de colarinho branco do setor de tecnologia. (O NewsGuild, sindicato que é parte do CWA, representa empregados do The New York Times.) A campanha se concentrou inicialmente nos trabalhadores de empresas de videogames, que têm jornadas de trabalho excessivas, em muitos casos, e estão expostos a demissões frequentes.
No final de 2019, organizadores do CWA começaram a se reunir com empregados do Google a fim de discutir uma campanha de sindicalização, revelaram trabalhadores que participaram das reuniões. Alguns empregados do Google foram receptivos e assinaram termos de adesão ao sindicato na metade do ano passado. Em dezembro, a União dos Trabalhadores da Alphabet realizou eleições para formar um conselho executivo de sete integrantes.
Mas diversos trabalhadores do Google que criaram petições e organizaram protestos na empresa objetaram à abordagem do CWA. Eles disseram ter se recusado a aderir porque consideravam que o esforço desconsiderou diversos organizadores experientes e minimizava os riscos de adesão, ao procurar recrutar integrantes.
Amr Gaber, engenheiro de software do Google que ajudou a organizar a paralisação realizada em 2018 como protesto, disse que os dirigentes do CWA expressaram desdém por outras organizações trabalhistas que apoiaram os trabalhadores do Google, em uma conversa telefônica com ele e outras pessoas da empresa em 2019.
“Eles se preocupavam mais com conquistar uma posição do que com as necessidades dos trabalhadores que participaram daquela conversa”, disse Gaber. “Como organizador trabalhista veterano e homem não branco, esse não é o tipo de sindicato que desejo construir”.
O CWA disse ter sido selecionado pelos trabalhadores do Google para ajudar a organizar o sindicato, e que não forçou a entrada. “São de fato os trabalhadores que escolhem”, disse Steffens, do CWA.
Os sindicatos tradicionais tipicamente buscam atrair a maioria dos trabalhadores de uma empresa, e em seguida solicitam que uma organização trabalhista estadual ou federal, como o Conselho Nacional de Relações do Trabalho, organize uma votação. Caso a sindicalização seja aprovada, o sindicato passa a representar os trabalhadores em negociações de contrato coletivo de trabalho. Uma união minoritária permite que os trabalhadores se organizem sem passar por essa votação formal.
O CWA usou esse modelo a fim de sindicalizar trabalhadores em estados nos quais as leis trabalhistas são desfavoráveis, como a União dos Funcionários Estaduais do Texas e os Trabalhadores Universitários Unidos do Tennessee.
A estrutura também oferece aos sindicatos incluir prestadores de serviço ao Google, presentes em número maior que o de empregados diretos e que não poderiam ser admitidos por um sindicato tradicional. Alguns empregados do Google vinham considerando há diversos anos a possibilidade de estabelecer uma união minoritária ou solidária, e os motoristas de empresas de serviços de carros formaram diversas organizações desse tipo.
Embora não tenha o poder de negociar contratos coletivos de trabalho, a União dos Trabalhadores da Alphabet pode usar outras táticas a fim de pressionar o Google a mudar suas normas, disseram especialistas em questões trabalhistas. As uniões minoritárias muitas vezes realizam campanhas de pressão e fazem lobby junto a órgãos legislativos ou regulatórios a fim de influenciar os empregadores.
“Vamos usar todas as ferramentas que pudermos, para empregar a ação coletiva a fim de proteger pessoas que que em nossa opinião estejam sendo discriminadas ou estejam sofrendo retaliações”, disse Shaw.
Membros da união mencionaram a decisão federal sobre a demissão dos dois trabalhadores ativistas, em 2019, e a saída da respeitada pesquisadora Gebru como motivos para ampliar os quadros do sindicato e reforçar suas ações públicas.
“O Google está deixando bem claro por que precisamos disso agora”, disse Auni Ahsan, engenheiro de software do Google e membro do conselho executivo do sindicato. “Às vezes o patrão é o melhor recurso do recrutador sindical”.
FONTE: FOLHA DE S.PAULO