Fonte: UOL / Cesar Vaz, Uallece Moreira Lima e Vitor Filgueiras (*)
O objetivo principal do Projeto de Lei (PL) 4302, recém-aprovado na Câmara dos Deputados, é permitir que empregadores terceirizem qualquer atividade dos seus negócios. Esse PL tramitou no Congresso entre 1998 e 2002, e aguardava, desde 2003, uma decisão sobre seu arquivamento.
O conteúdo do PL e o intervalo que separa sua proposição da votação da semana passada ajudam a explicitar duas questões fundamentais no debate sobre a terceirização e, desse modo, colaboram para uma disputa mais franca sobre sua regulação. Afinal: 1) O que é terceirização? e 2) A terceirização ajuda a reduzir o desemprego?
A primeira questão é normalmente respondida pela ideia de que terceirização é a transferência de atividades de uma empresa (a tomadora ou contratante), para alguém especializado naquela atividade (a terceirizada). A contratante se concentraria nas suas atividades principais, melhorando seus procedimentos e aumentando sua produtividade. Assim, a terceirização seria a radicalização da divisão social do trabalho, já que agora mais empresas se envolveriam na produção de uma mesma mercadoria.
Contudo, o PL 4302 explicita a contradição desse conceito. Se terceirização é especialização produtiva, como pode uma empresa terceirizar todas as suas atividades? Em que seria ela especializada? Se a atividade é efetivamente transferida, a contratante não dirige a produção. Assim, se ela terceiriza sua atividade fim, o que ela faz?
Essa é uma das contradições que evidenciam que terceirização é, de fato, uma forma de contratação de trabalhadores, uma estratégia de gestão do trabalho com o uso de um intermediário, que pode assumir inúmeras formas jurídicas. Na verdade, como indicam centenas de casos investigados ao longo de mais de uma década, na terceirização a contratante mantém o controle do processo de produção e do trabalho, utilizando para isso os mais diversos expedientes, mesmo que dissimulados.
A terceirização busca reduzir as chances de resistência dos trabalhadores (e da regulação que deveria lhes proteger) ao poder patronal, diminuindo limites à exploração do trabalho. Não parece coincidência que, mesmo num país em que condições de trabalho precárias se espalham pelo conjunto do mercado de trabalho, todos os indicadores apontem que os trabalhadores terceirizados são submetidos a situações ainda piores do que aqueles diretamente contratados. Mesmo sem ser maioria no mercado de trabalho, os trabalhadores terceirizados são vítimas preferenciais de formas extremas de exploração.
Mesmo sem ser maioria no mercado de trabalho, os trabalhadores terceirizados são vítimas preferenciais de formas extremas de exploração.
Entre 2010 e 2014, os maiores flagrantes de trabalhadores em condições análogas à de escravos já sugeriam a predominância maciça dos terceirizados entre as vítimas desse crime.
Agora, o Núcleo de Estudos Conjunturais da Universidade Federal da Bahia levantou todos os 86 resgates ocorridos no estado entre 2003 e 2016, e descobriu que 76,7% de todos os casos envolviam trabalhadores terceirizados. Os intermediários assumiam diversas aparências, de “gatos” a pessoas jurídicas formalmente estabelecidas. Os tomadores de serviço atuavam em vários setores e incluíam desde comerciantes, até grandes construtoras, frigoríficos e multinacionais do chamado agronegócio.
Em suma: a regulação da terceirização é uma disputa sobre formas de contratação de trabalhadores, da redução ou não dos limites à exploração do trabalho, e não sobre o aprofundamento da divisão do trabalho na economia.
Além disso, a trajetória do PL 4302 ajuda a evidenciar que a terceirização (ou outros instrumentos que reduzam o chamado custo do trabalho) não ajuda a criar empregos. Quando esse PL tramitou pela primeira vez no Congresso, a retórica da necessidade de redução de custos do trabalho para combater o desemprego já era hegemônica. Na década de 1990, houve redução de salários e direitos, além da flexibilização do uso da terceirização pelo Tribunal Superior do Trabalho, como os empresários demandavam. Contudo, nesse período houve grande aumento do desemprego.
Nos anos subsequentes, desemprego e informalidade caíram fortemente, enquanto houve crescimento dos salários e, ao contrário do que pediam os empresários, a terceirização não foi completamente liberalizada. Ou seja, o Brasil é um caso exemplar de que não há relação entre cortes de direitos e salários e a criação de empregos.
Mas tem mais. Pesquisa da Organização Internacional do Trabalho divulgada em 2015 mediu os impactos da regulação de proteção ao trabalho em 63 países entre 1993 e 2013, concluindo que não há relação estatisticamente significativa entre regulação e desemprego. Ainda assim, os resultados demonstram que, onde a legislação cresceu, o desemprego caiu no longo prazo. E onde a proteção foi reduzida, o desemprego aumentou.
O PL 4302, se fosse testemunha dos anos que passaram desde a sua criação, saberia que o ataque a trabalhadores e seus direitos, como a terceirização efetivamente provoca, não combate o desemprego, cuja solução passa por políticas macroeconômicas opostas às que hoje são praticadas.
(*) Cesar Vaz é professor de Economia da Universidade Católica de Salvador; Uallece Moreira Lima é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia; Vitor Filgueiras é auditor fiscal do Ministério do Trabalho, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, com pós-doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas.