Foi aprovada no Senado, no dia 11 de julho, a chamada reforma trabalhista, sancionada pelo presidente Michel Temer, sem vetos, no dia 13 seguinte, passando a vigorar como Lei nº 13.467/2017.
A reforma promete o que não pode entregar (mais empregos e segurança jurídica), tanto que no mesmo dia de sua aprovação – por acaso? – uma das maiores e mais sólidas empresas do Brasil (o Banco Bradesco) já anunciou um programa de demissão voluntária (PDV).
Mas o assunto aqui é outro e bastante específico. Trata-se de um aspecto constante da nova Lei, situado no seu art. 4º, § 2º, que bem evidencia o perfil dessa “nova CLT”.
Refiro-me aos novos e prejudiciais contornos daquilo que a lei considera “tempo à disposição do empregador”, tema importantíssimo para todos os fins no Direito do Trabalho, especialmente para aqueles trabalhadores que estejam, eventual ou rotineiramente, em atividades externas.
Na redação anterior à reforma, a regra do art. 4º (caput) da CLT estava assim redigida: Art. 4º – Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada”. Esta parte do artigo (a cabeça) ficou mantida e não é ai que reside o problema.
Os termos do caput, na versão histórica e modificada em 13 de julho, era apenas complementada pelo parágrafo único, especificando que também são contados no tempo serviço para fins de indenização e estabilidade, os períodos de afastamento do trabalhador para fins de prestação de serviço militar e por acidente de trabalho.
Apenas como registro, os termos indenização e estabilidade reportam-se ao período anterior à introdução em nosso ordenamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Antes desse evento, os trabalhadores que atingissem dez anos de contrato na empresa só poderiam ser demitidos por justa causa; para os demais, nas dispensas sem justa causa, pagava-se uma indenização correspondente a um ano do salário. Instituído o FGTS, ainda que supostamente opcional, o efeito prático foi o de efetivamente extinguir-se a estabilidade decenal, já que as carteiras eram anotadas pelas empresas com o registro de opção, sem nenhuma chance de efetiva negociação a respeito.
Mas eis que, com a Lei 13.467, o artigo vem com outro acréscimo, desta feita extremamente danoso e perigoso para os trabalhadores.
O parágrafo único ficou divido agora em parágrafos primeiro e segundo, sendo que este último está assim redigido: “Art. 4º, § 2° Por não se considerar tempo à disposição do empregador, não será computado como período extraordinário o que exceder a jornada normal, ainda que ultrapasse o limite de cinco minutos previsto no § 1º do art. 58 desta Consolidação, quando o empregado, por escolha própria, buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas ou más condições climáticas, bem como adentrar ou permanecer nas dependências da empresa para exercer atividades particulares, entre outras (..)”.
Sem as inversões frasais, destinadas a dificultar a compreensão das pessoas leigas, principalmente, o que está dito no texto supra, com todas as letras, é que, quando o empregado, por escolha própria, buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas (assaltos com troca de tiros, por exemplo) ou más condições climáticas (enchentes é outra possibilidade recorrente), esse período despendido com a proteção pessoal (visto estranhamente pela lei como uma mera possibilidade de “escolha” pessoal) não será considerado tempo à disposição do empregador.
A leitura atenta da norma enseja concluir sobre a sua notória perversidade, não ao tratar apenas de supressão de horas extras (aspecto patrimonial mais diretamente enfocado), mas sobretudo por impor riscos elevados aos trabalhadores.
Melhor explicando, no texto anterior, diante de uma situação aflitiva como insegurança em via pública ou más condições climáticas, a única preocupação do trabalhador haveria de ser com a sua integridade física. Do restante cuidasse Deus, porque seus direitos estariam pelo menos enunciativamente assegurados.
Doravante, pelos termos frios da lei nova, terá de pensar muito entre a opção de abrigar-se e proteger-se de bala de fuzil ou correr o risco de enfrenar a linha de fogo para voltar imediatamente para a empresa. Isso porque a opção racional do abrigo e da proteção pode também lhe custar muito (uma pressão psicológica que agora a lei impõe).
O texto da norma, em uma leitura rápida, remete a entender que apenas seriam desconsideradas como extras essas horas de necessário resguardo (diante da insegurança em via pública ou más condições climáticas), o que é verdadeiro e já por si extremamente danoso ao trabalhador. E assim seria feito, dessa perspectiva, porque se o trabalhador passar duas ou três horas em atividade externa, protegendo-se dessas horas aflitivas e de agonia, chegando à empresa já às 18:00, por exemplo, na hora tradicional de encerrar o expediente, pode ser chamado pelo chefe para continuar a trabalhar até as 20:00 ou 21:00, sem receber horas extras, tendo em vista os referidos acontecimentos. Esta é a razão declarada na norma.
O pior de tudo isso, entretanto, é se o trabalhador for vítima de algum infortúnio no momento em que se protegia (uma bala perdida) e vier a óbito ou sofrer grave lesão incapacitante, caso em que sua família ou o trabalhador certamente encontrariam pela frente arguições de que, naquela situação, dado esse novo status jurídico, não estaria mais legalmente em serviço, enfrentando dificuldades para recebimento de indenizações e da própria proteção previdenciária.
Isto porque a alteração já referida mexe completamente no diálogo internormativo que há entre o sobredito art. 4º, §2º da CLT e o art.21, IV, “a” a “d” da Lei 8.213.
Pelo novo texto do §2º do art. 4º (e aí é necessário levar na frase sutilmente redigida a noção de tempo e não as relações de efeito) fica claro que quando o empregado, por escolha própria, buscar proteção pessoal para se proteger de violência ou intempéries climáticas durante a jornada, esse tempo não será considerando (ao menos na literalidade do novo texto) como tempo à disposição do empregador.
A norma interage diretamente com o art. 21 da Lei 8.213, especialmente seu inciso IV, “a” :
“Art. 21. Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei: IV – o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho: a) na execução de ordem ou na realização de serviço sob a autoridade da empresa; b) na prestação espontânea de qualquer serviço à empresa para lhe evitar prejuízo ou proporcionar proveito; c) em viagem a serviço da empresa, inclusive para estudo quando financiada por esta, dentro de seus planos para melhor capacitação da mão de obra, independentemente do meio de locomoção utilizado, inclusive veículo de propriedade do segurado; d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado”.
Note-se, além do mais, que a Lei 8.213 é específica quanto a identificar os casos de intervalo para fins de exercício do trabalho (§ 1º do art. 21), sendo fundamental que a lei trabalhista não abra dúvidas desnecessárias, nem enseje desproteções, como o faz a norma questionada: “Art. 21 – § 1º: Nos períodos destinados a refeição ou descanso, ou por ocasião da satisfação de outras necessidades fisiológicas, no local do trabalho ou durante este, o empregado é considerado no exercício do trabalho”.
Nesse sentido, como entende a doutrina, o acidente é evento ocorrido “no exercício da atividade laborativa” ou “em decorrência do trabalho” (cf. Carlos Alberto Castro e Lazzari), ficando claro que a novidade da norma (§ 2º do art.4º)dá ensejo a discussões de muita gravidade, colocando no horizonte um contexto de extrema desproteção, principalmente para os trabalhadores externos, como vendedores, repórteres, jornalistas e seus auxiliares, carteiros, motoboys, entre muitos outros, na medida em que se faz a opção de desconectar a já referida proteção de situações arriscadas das atividades laborais.
É ainda mais preocupante, nessa mesma linha, quando se tem em conta que o art. 320, § 5º da INSTRUÇÃO NORMATIVA INSS/PRES Nº 77, de 21 de janeiro de 2015, baixada com base no art. 26 do Anexo I do Decreto nº 7.556, de 24 de agosto de 2011, embora tratando apenas de assunto conexo, também consolidou orientação sobre o acidente de percurso, mas deixando clara a circunstância dos chamados “interesses pessoais” como excludentes: “art.320, § 5º: Não se caracteriza como acidente de trabalho o acidente de trajeto sofrido pelo segurado que, por interesse pessoal, tiver interrompido ou alterado o percurso habitual”.
“Interesses pessoais”, tal como ali colocado, não se distingue em substância da expressão trazida com o novo texto legal “por escolha própria”,, de sorte que é nesse ponto que se estabelece o ardil.
O que se traz aqui à consideração, com o alerta da perversa alteração, como há outras, é que a norma expõe o trabalhador a risco tanto por uma explícita razão mesquinha (prorrogar jornada e não pagar horas extras), mas agravando de forma muito mas funesta os riscos, pelo que há nas outras linhas menos claras (mas não menos danosas), que são os motivos mais draconianos, para tentar livrar condenações por danos morais por acidentes de trabalho, sem nem mesmo importar-se o legislador que seja ao preço do comprometimento de prestações previdenciárias a que fariam jus os trabalhadores ou suas famílias que, a depender do tamanho das tragédias, não raro batem às portas da Justiça do Trabalho pelas mãos das incontáveis vítimas da insegurança cotidiana e da imprevidência do empregador.
Como esta, há muitas outras maldades na reforma trabalhista, que causarão muitos prejuízos aos trabalhadores brasileiros e à sociedade como um todo, inclusive pequenos e médios empresários, ao contrário do que se afirma por aí, ao dizer que o novo texto traz segurança jurídica para todos. Com a publicação da Lei 13.467 (que entrará em vigor daqui a aproximados 120 dias) haverá tempo para detalhar outros aspectos e demonstrar outros gravíssimos equívocos e inconstitucionalidades desta Lei.
Germano Silveira de Siqueira - Juiz do Trabalho, Titular da 3ª Vara do Trabalho de Fortaleza (CE). Ex-Presidente da ANAMATRA – Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (biênio 2015/2017).