Na atualidade, os avanços da tecnologia e da ciência têm sido pauta de grandes debates sobre o potencial impacto dos seus consequentes inventos, haja vista que afetarão exponencialmente as relações humanas.

Necessária a preocupação, sobretudo no que se refere à tutela da dignidade da pessoa humana, pois note-se que nem sempre os consideráveis progressos científicos estão vinculados ao bem comum da coletividade, mas podem surgir com a finalidade de beneficiar pequenos grupos econômicos, o que se verifica estar em dissonância com o predito na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Ulrick Beck [1] já advertiu acerca desses acontecimentos quando enfatizou que:

"(…) Os riscos e ameaças atuais diferenciam-se, portanto, de seus equivalentes medievais, com frequência semelhantes fundamentalmente por conta da globalidade de seu alcance (ser humano, fauna, flora) e de suas causas modernas. São riscos da modernização. São um produto de série do maquinário industrial do progresso, sendo sistematicamente agravados com seu desenvolvimento ulterior".

Note-se que a preocupação com o desenvolvimento sustentável — sobretudo nas relações de trabalho —, abrangido pela dimensão social da sustentabilidade, é anterior à própria CRFB/88, e tem claro respaldo e receptividade pela nossa Carta Maior, logo, as inovações futurísticas e inventos desse tempo não podem sufragar de forma alguma direitos e garantias fundamentais.

Fala-se isso observando-se a realidade dos trabalhos formulados — esses oriundos de uma sociedade de informação sofisticada que acaba desprivilegiando a dignidade da pessoa humana, vejamos.

Recentemente teve-se a notícia de que o aplicativo de entregas Loggi está obrigado a reconhecer vínculo trabalhista com os motoboys que utilizam a plataforma, decisão da 8ª Vara do Trabalho de São Paulo em ação civil pública [2].

Discute-se certamente a manutenção do postulado da livre iniciativa em confronto com princípios de cunho social — inclusive o abalo na economia, mas há de se salientar que a não regulação mínima de semelhantes inventos tecnológicos pode configurar em médio e longo prazos um seríssimo impulsionador de injustiças sociais.

Ora, raciocinemos, se o utilizador do Uber Eats, por exemplo, não possui nenhuma vinculação com a empresa que indica o serviço a ser realizado, nem ao menos com o destinatário — em um eventual acidente estão todos eximidos de responsabilidade, a empresa com o serviço talvez realizado, e o destinatário, satisfeito, já o trabalhador, prejudicado, isso não se verifica razoável em um Estado democrático de Direito.

Não se entende certamente plausível uma tutela estatal dos avanços de forma a causar prejuízo demasiado aos empreendedores que possuem certamente uma nobre intenção de trazer significativos auxílios tecnológicos para a sociedade, entretanto uma mínima regulação nos moldes da CRFB/88 verifica-se necessária para fazer valer as conquistadas garantias e direitos fundamentais — principalmente a dignidade da pessoa humana.

Imperioso dizer, inclusive, que essa abordagem não possui caráter ideológico, nem político-partidário, mas científico — de forma a contribuir com a ciência jurídica no que tange à temática: Direito e tecnologia.

Com efeito, a busca pela justiça social é uma constante evolução na história do homem, valendo-se do Direito como ciência para a sua realização, de modo que o progresso tecnológico deve caminhar pari passu com a proteção dos direitos fundamentais de trabalhadores e jamais se sobrepor a valores tão caros como a dignidade da pessoa humana constitucionalizada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

É inegável que o desenvolvimento tecnológico avançado é uma realidade palpável da contemporaneidade, caminhando-se quiçá para um "Admirável Mundo Novo", de Huxley, numa visão de uma sociedade tecnológica e distópica, que é ao mesmo controlada pelo sistema político e econômico num contexto racional que não considera a vontade individual e prioriza o progresso científico em detrimento da liberdade e do humanismo.

Há de se levar em conta que os direitos sociais são fundamentais, tendo previsão expressa no artigo 6º da Constituição Federal brasileira de 1988, entre os quais se insere o direito ao trabalho, gozando o trabalhador de uma série de garantias (artigo 7º) visando à melhoria da sua condição social, o que implica dizer que nenhuma relação de trabalho deve estar à margem da tutela estatal, tampouco deve existir qualquer forma de degradação da pessoa humana que não assegurem condições dignas de trabalho.

Essa aquisição constitucional decorre de um processo histórico de lutas na relação entre capital e trabalho, em que a classe proletária sempre foi vitimada pela exploração do capital, na medida em que não havia ainda uma ordem jurídica voltada para a proteção do trabalhador, o que ocorreu ao longo do tempo com a implementação de legislações de cunho social até a constitucionalização na categoria de direito fundamental estendido de forma universal à população [3].

Dessa forma, observa-se que entre a teoria e a realidade brasileira há ainda muito que fazer para que se tenha uma proximidade razoável, mormente com o advento da pós-modernidade e as consequentes mudanças operadas na sociedade, entre estas o surgimento de novas formas de trabalho que não contemplam uma proteção jurídica regulamentada, o que inevitavelmente fragilizará as relações entre capital e trabalho, no sentido de que o trabalhador se tornará vulnerável pela ausência de critérios normativos para a tutela estatal.

O mundo pós-moderno operou verdadeira quebra de conceitos pré-estabelecidos, uma virada de valores e uma fluidez de paradigmas jamais experimentada, tornando tarefa difícil uma produção legislativa que acompanhe o ritmo veloz com que tais mudanças ocorrem, o que favorece por sua vez uma menor proteção aos hipossuficientes, entre estes os trabalhadores que servirão de mão-de-obra para as novas demandas que vicejam na pós-modernidade, havendo por outro lado uma progressiva defasagem e eliminação de trabalhos e profissões que não mais se enquadram na realidade social, muito embora sejam regulamentadas por lei e gozem de uma proteção do Estado.

Nessas condições, deve-se buscar o realismo jurídico de modo a tornar a lei mais responsiva às necessidades sociais. O direito responsivo consiste em encontrar uma resposta para os problemas de modo substantivo e não pela mera formalidade legal, de modo a se tornar adaptável seletivamente, e conservar "a capacidade de compreender o que é essencial à sua integridade e ao mesmo tempo levar em consideração as novas forças do ambiente social" [4].

Na esteira de Bobbio, "a efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana" [5], desenvolvimento este não meramente tecnológico, mas que esteja revestido por uma ética humanística que diminua a desigualdade social e dignifique o trabalhador na sua condição de pessoa humana dotada de garantias fundamentais, devendo-se buscar para tanto um direito realista responsivo que possa concretizar a justiça substantiva.

Na era da internet e, por consequência, do mundo virtual, o que se observa cada vez mais é a perda da identidade física das pessoas, em que relações negociais e de trabalho são estabelecidas à distância, juntamente com a tomada de decisões, sem que haja um contato presencial mais próximo entre patrão e empregado, o que de certa forma torna mais ágil o processo e mais econômico, na medida em que as informações são digitalizadas de modo instantâneo com menor custo operacional e maior produtividade, mas que por outro lado quebra a possibilidade de um diálogo interativo voltado para o consenso e ponderação quanto aos direitos trabalhistas dessa nova era.

Referido quadro se tornou mais evidente quando entrou em cena a Covid-19, no começo de 2020, e o mundo passou por uma transformação social sem precedentes em toda a sua história, em que por força da letalidade viral foi determinado o distanciamento social juntamente com o fechamento de fábricas e de estabelecimentos comerciais (lockdown), e por consequência a virtualização da prestação de serviços não mais no local de trabalho mas, sim, a partir de ambientes isolados (home office), o que evidentemente trouxe pesadas perdas à economia e, mormente, ao trabalhador, seja pelo desemprego ocasionado, seja pela não adaptação à nova realidade.

É certo que vivemos em um sociedade pós-moderna de risco, em que "a produção social de riqueza é acompanhada sistematicamente pela produção social de riscos" [6]; é certo também que cabe ao Direito regular esta questão, assegurando a todos a segurança jurídica necessária em conformidade com os direitos constitucionais. Contudo, diante da inesperada pandemia, ocorreu um enorme vácuo legislativo para regular situações inéditas, fragilizando ainda mais a relação capital trabalho em detrimento do trabalhador assalariado ou autônomo.

Diante do cenário agravado e acelerado pelo caos pandêmico, é imprescindível que a sociedade aberta se mobilize rapidamente para que por meio do debate político e democrático se encontrem as soluções jurídicas viáveis para resguardar o status quo do trabalhador que se encontra alijado dos seus direitos fundamentais, evitando, assim, a precarização do seu ofício e da sua própria dignidade que se vê privada do mínimo existencial em clara contradição com o espírito da mens legis constitucional. 

Referências bibliográficas


BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Tradução Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

NONET, Phillipe; SELZNICK, Philip. Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução Vera Pereira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010.

REDAÇÃO. Motoboys têm vínculo de emprego com a Loggi, define Vara de São Paulo. Revista Consultor Jurídico — CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-06/motoboys-vinculo-emprego-loggi-define-vara-sp.

SIMÕES, Carlos. Teoria & Crítica dos Direitos Sociais: O Estado Social e o Estado Democrático de Direito. São Paulo: Cortez Editora, 2013.

[1] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 26.

[2] REDAÇÃO. Motoboys têm vínculo de emprego com a Loggi, define Vara de São Paulo. Revista Consultor Jurídico — CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-dez-06/motoboys-vinculo-emprego-loggi-define-vara-sp. Acesso em: 05 ago. 2021.

[3] SIMÕES, Carlos. Teoria & Crítica dos Direitos Sociais: O Estado Social e o Estado Democrático de Direito. São Paulo: Cortez Editora, 2013, p. 189.

[4] NONET, Phillipe; SELZNICK, Philip. Direito e Sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo. Tradução Vera Pereira. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010, pp. 121-125.

[5] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Tradução Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 44.

[6] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 23

 

Maykon Fagundes Machado é advogado, mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali–SC), bolsista Fapesc-Univali, pós-graduando em Jurisdição Federal pela Escola da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (Esmafesc) e em Direito Ambiental pela Faculdade Cers, membro da Comissão Estadual da OAB/SC em Desenvolvimento e Infraestrutura e da comissão permanente da OAB, Subseção de Itajaí/SC, em Análise de Contas Públicas.

João Batista da Cunha Ocampo Moré é mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali), doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí e a Universidade de Perugia-IT e juiz de Direito do Estado de Santa Catarina.

 é acadêmica do curso de Direito da Universidade do Vale de Itajaí (Univali), pesquisadora bolsista no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/Univali) e estudante integrante do grupo de pesquisa "Direito Ambiental, Transnacionalidade e sustentabilidade" cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq/Univali.

 

FONTE: REVISTA CONSULTOR JURÍDICO/CONJUR