A desconstrução bolsonarista dos direitos trabalhistas e da proteção social aos assalariados, por José Dari Krein e Renata Dutra
Na continuidade de enfrentamento da crise, as medidas anunciadas seguiram a mesma tendência de fragilizar a condição de assalariamento com proteção e de tornar ainda mais vulneráveis os ocupados.
por José Dari Krein e Renata Dutra[1]
Mesmo antes do atual cenário de crise sanitária e econômica, o governo Bolsonaro apresentou de forma cristalina as suas proposições de continuar desconstruindo direitos e proteções sociais dos assalariados, como pôde ser observado na reforma da previdência aprovada em 2019, na MP 905/2019 (carteira de trabalho verde e amarela), na extinção do Ministério do Trabalho, nas afirmações públicas de que o mercado de trabalho almejado é o próximo da informalidade. A desconstrução de direitos é complementada com uma política social de caráter mais assistencial, como fica evidente no atual debate de substituição do bolsa família pelo Renda Brasil.
Na crise, apesar de o Congresso – por pressão da sociedade – ter ampliado as transferências de renda para os assalariados do setor privado (suspensão do contrato e redução da jornada e do salário acompanhados de benefício emergencial atrelado ao valor do seguro desemprego) e do auxílio emergencial (para os informais, desempregados, MEIs, trabalhadores por conta própria sem renda), as medidas continuam trazendo no seu bojo o aprofundamento da agenda de flexibilização do trabalho, que é sinônimo de maior vulnerabilidade, insegurança e precariedade para os trabalhadores[2].
Na continuidade de enfrentamento da crise, as medidas anunciadas seguiram a mesma tendência de fragilizar a condição de assalariamento com proteção e de tornar ainda mais vulneráveis os ocupados.
Em primeiro lugar, apesar da pandemia continuar atingindo a população em um patamar muito elevado e a crise do mercado de trabalho mostrar dados preocupantes (13,7% de desemprego aberto + 76,8 milhões de pessoas fora da força de trabalho), as medidas de transferências de renda aos assalariados estão com prazo de validade expirando depois de 6 meses, sem perspectiva de continuidade, o que pode gerar um agravamento do quadro de quem precisa trabalhar para sobreviver. O mesmo raciocínio vale para a redução do valor (para R$ 300,00) e do número de beneficiários do auxílio emergencial prorrogado por mais três meses. As limitações das transferências tendem a aprofundar a perda de rendimentos[3].
Em segundo lugar, entre idas e vindas, está a proposta do Renda Brasil/Renda Cidadã, como medida assistencial substitutiva do bolsa família, que visa a ampliar e a aprofundar o pagamento do benefício, inicialmente por meio da extinção de direitos relacionados ao assalariamento, como o abono salarial[4] e a redução de proteção a grupos vulneráveis, tais como auxílio defeso e a redução do valor das aposentadorias/pensões.
O ministro Paulo Guedes, em 13/8/2020, manifestou à imprensa à intenção de renovar o projeto da carteira de trabalho verde e amarela, sem, no entanto, apresentar uma proposta escrita. Ela se insere na proposta geral de um “novo marco legal do trabalho”, cuja tônica é a redução de custos. Pelas declarações do ministro, todavia, se percebe que o conteúdo da MP 905 seria significativamente alterado. Guedes fala de remuneração por hora, com pagamento proporcional de direitos trabalhistas, bem como de ampliar a margem de utilização do referido contrato: “no primeiro ano, as empresas poderiam ter 10% dos empregados contratados pelo regime de pagamento por hora trabalhada. No segundo ano, 20% e, no terceiro, 30%. Empresas de saneamento seriam exceção e já começariam com 50% no primeiro ano”.
O governo aproveita a crise causada pela pandemia para “dobrar a aposta”, indo além até mesmo das demandas do setor patronal (saliente-se que a restrição original da CNI à proposta referia-se exclusivamente à questão da fiscalização do trabalho[5]). O conteúdo volta mais “agressivo”, em face do contexto pandêmico, e também dialoga com outras agendas do governo, como a privatização do setor de saneamento, que poderia, de início, contratar 50% da força de trabalho sob esse regime, diferentemente dos outros setores.
Ainda despontam nesse quadro as propostas relacionados à Reforma Tributária, que se concentram na criação de contribuição sobre bens e serviços, incluindo comércio eletrônico (medida de simplificação tributária); substituição do IPI por um imposto seletivo, objetivando o estímulo à produção industrial; diminuição da tributação de pessoas físicas e jurídicas, com redução das deduções do IRPF e do valor das contribuições para o sistema S e instituição de um imposto sobre dividendos; desoneração da folha de salário e criação do imposto sobre transação financeira. Por fim, proposta de imposto de renda negativo, com benefício exclusivo para os mais pobres, aliado à desoneração do trabalho formal e à implementação de formas contratuais cada vez mais precárias. Nesse conjunto, é sintomático o silêncio sobre taxação das grandes fortunas, prevista na Constituição e pendente de regulamentação desde 1988. São propostas em debate entre a equipe econômica e o Congresso, em que a premissa básica é facilitar a vida das empresas, reduzindo a força de trabalho a uma mercadoria, resultante da dinâmica econômica. Vale dizer que a referida proposta não é objeto de consenso entre Governo e Congresso Nacional, que tem tido diálogo difícil com o ministro Guedes.
Embora essas duas grandes linhas de atuação governamental (medidas de amparo à situações de emergência e aprofundamento da agenda neoliberal) possam parecer opostas e possam parecer servir a interesses e destinatários distintos (respectivamente, a população mais pobre e vulnerável, com fins eleitorais, e o mercado, com garantia da implantação de sua agenda), uma leitura ampla do quadro atual permite vislumbrar uma conduta unívoca: a desconstrução da sociedade salarial, por meio de uma ação pública concertada para garantir a sobrevivência dos mais pobres, numa perspectiva estritamente assistencial, que desconstrói a linguagem dos direitos, aliada à flexibilização cada vez mais ampla das relações de trabalho, com submissão dos assalariados à concorrência no mercado.
Essa tendência é reforçada com as iniciativas de enfraquecer e até inviabilizar o movimento sindical, implantadas por meio das disposições da reforma trabalhista e das medidas provisórias que a seguiram, obstaculizando o financiamento sindical, bem como pela tendência recente de afastamento do sindicalismo em relação às negociações, que passam a acontecer de forma individualizada. A fragilização das instituições de representação social pode levar a termos uma sociedade com crescente déficit de democracia, pior distribuição da riqueza gerada e ausência de um desenvolvimento sustentável.
Conjugado o conjunto das iniciativas, caminha-se no sentido de redefinir um lugar para o trabalho na sociedade brasileira – precário, mercantilizado e vulnerável – ao passo que a afirmação de algumas políticas sociais de emergência, alcançando os extremamente vulneráveis, se dá sem reversão do cenário de negação de uma cidadania social como responsabilidade do Estado e direito dos trabalhadores.
[1] Membros da REMIR – Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista.
[2] Conferir uma análise das medidas em Biavaschi e Vazquez, 2020. Disponível em: https://www.cesit.net.br/medidas-para-o-trabalho-no-contexto-de-pandemia-um-atentado-contra-a-razao-humana/
[3] Em São Paulo – que é uma economia mais estruturado comparada com o restante do país – 55% dos ocupados com até 2 salários mínimos tiveram perda de renda durante a pandemia. Entre os autônomos foi ainda maior: 66%. Cf. uol. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/09/mais-da-metade-dos-paulistanos-tiveram-queda-na-renda-por-causa-da-pandemia.shtml. Acesso 28/09/2020.
[5] Ver Agenda Legislativa 2020 da CNI.
[6] Ver nota da REMIR sobre a MP 936 e a ADI 6363. Disponível em: https://www.eco.unicamp.br/remir/index.php/notas-publicas/161-notas-publicas