Talvez, por isso, haja tanto empenho da armação em questionar o projeto que tramita em regime de urgência. No entanto, acreditamos que ele seja necessário se estamos na busca por navios competitivos para a navegação doméstica.
Os armadores, especialmente no setor de contêineres, construíram a ficção de que o navio, quando opera na cabotagem, compete com o caminhão. O esforço é compreensível, pois tal enredo lhes possibilita obter lucros certos e fartos, ao mesmo tempo que permite oferecer aos usuários custos levemente inferiores aos oferecidos pelo modal rodoviário.
Contudo, o custo situa-se em patamar muito superior ao que poderia existir na cabotagem se houvesse uma política para incentivar a competição entre navios. O enredo dos armadores permite, ainda, que possam demonizar outros atores por não oferecerem preços mais condizentes com o que se espera do transporte marítimo.
Observamos que um navio de porte médio operando nas longas distâncias do nosso litoral substitui facilmente 3 mil caminhões com, pelo menos, 3 mil motoristas.
O navio para transportar 3 mil contêineres requer uma tripulação com cerca de 20 marítimos, com significativo diferencial no custo para o mesmo volume de carga transportada. O número de marítimos não se altera quando aumenta a quantidade de contêineres transportados.
Quanto ao combustível, o caminhão consome produto de melhor qualidade e muito mais caro do que os navios em mar aberto. Além disto, há a vantagem da economia de escala. Dois aspectos que já bastariam para demonstrar as grandes diferenças de custo entre os modais.
O crescimento persistente de 12% ao ano na movimentação de mercadorias em contêineres no Brasil e o investimento contínuo da armação na ampliação da capacidade tornam sem sentido a tese de competição entre os custos dos dois modais, como historicamente se faz.
Os navios necessitam competir com outros navios para haver ambiente economicamente saudável na cabotagem. É essa competição que tem feito falta ao país. A origem dos problemas que levam o usuário a clamar por custos e serviços satisfatórios está na existência de um oligopólio de três empresas.
Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), dos quase 5 mil filiados que são usuários da cabotagem, apenas 8% se disseram atendidos em suas necessidades. E essa minoria tinha em comum o fato de serem grandes clientes, em condição de negociar contratos com previsibilidade de datas e locais para embarque das cargas.
Os demais usuários vivem correndo atrás de navios, quando a solução rodoviária não é viável. Entre usuários do agronegócio, a insatisfação levou a senadora Kátia Abreu a apresentar projeto de lei buscando ampla abertura da cabotagem. Mais pareceu um grito de desespero — embora sem compromisso com o futuro — tal qual injeção de morfina em paciente terminal.
Desde o fim das conferências de frete, no governo Collor, o país não foi capaz de implementar a competição no setor. Desapareceu a participação regular no longo curso quase ao mesmo tempo que chegava entre nós o capital estrangeiro travestido de empresa brasileira e se multiplicaram as iniciativas de concentração da atividade em poucas, porém imensas, empresas internacionais de navegação.
O oligopólio estabeleceu-se e, agora, busca eliminar a possibilidade de futuro para a soberania brasileira no transporte marítimo, buscando acabar com a capacidade de o país movimentar as cargas domésticas sem participação e controle dessas empresas, que avançam a passos largos no porta a porta, também. No estágio atual, em que não falta quem entenda que o paciente já seja terminal, o BR do Mar oferece nova e criativa medicação que, talvez, retire a condição terminal do paciente.
Num cenário no qual apenas três empresas dominam 99% das cargas transportadas em contêineres nas longas distâncias da costa brasileira, o Projeto de Lei nº 4.199/20, conhecido como BR do Mar, é opção que cobra dose de sacrifícios de todos, mas que pode tirar o setor da condição de paciente terminal.
Ao marítimo brasileiro lhe retira a proteção da bandeira e o força a conviver com parâmetros de referências nunca utilizados em navios estrangeiros em águas nacionais. À construção naval faz o alijamento gradual da cabotagem, limitando-a ao reparo e às demais navegações. Ao armador oferece cenário de competição com novos navios, o que não deve ser animador para o oligopólio instalado.