JOSE ERNANE DE SOUZA BRITO*
Estudo sobre o desvio da arrecadação fiscal no Brasil, publicado desde 2013 pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional - SINPROFAZ, e que fundamenta os números do painel Sonegômetro, mostra que o país vem perdendo mais de R$ 500 bilhões por ano somente com a sonegação de tributos. Ou seja: em apenas dois anos, o prejuízo aos cofres públicos ultrapassa com folga a economia prometida ao longo de uma década pelos defensores do desmonte da Previdência Social.
Considerando a sonegação de R$ 626,8 bilhões estimada para 2018, nós nos deparamos com um montante que representa 88,2% dos R$ 710,5 bilhões arrecadados por todos os estados e municípios no ano passado. Nessa perspectiva, conforme o estudo do Sindicato, “poder-se-ia afirmar que, se não houvesse evasão, o peso da carga tributária poderia ser reduzido em quase 30% e ainda manteríamos o mesmo nível de arrecadação”1. Obviamente, não se trata aqui de apostar na utopia de um Brasil sem sonegação, mas sim de considerar um dado que deveria ser incluído como medida de eficiência em qualquer política séria de combate à sonegação e ao ajuste fiscal.
Por total falta de nexo que razoavelmente explique o descaso, a leniência ou, pior, a conivência com tamanho rombo arrecadatório, resta-nos recorrer a metáforas surreais para ilustrar esse absurdo. Imagine, por exemplo, rodar em um carro com o tanque furado e, em vez de consertar o vazamento, sair de posto em posto para completar o combustível. Seria cômico se não fosse trágico, pois quem paga essa conta insana são os mais pobres e a classe média.
Pior que está, fica? Sim. Como se não bastassem as práticas de evasão (sonegar ou deixar de pagar tributos) e de elisão (usar de artifícios contábeis para justificar recolhimentos menores de tributos ou mesmo a isenção de obrigações tributárias), tornou-se fácil para o grande contribuinte declarar o débito tributário na forma correta, gerar as guias de recolhimentos e, simplesmente, não pagar nada. Agindo assim, a pessoa ou instituição torna-se inadimplente à luz da Justiça, e não sonegadora. Claro, isso é para poucos.
Um cidadão comum ou pequeno empresário dificilmente consegue se manter tendo o CPF ou o CNPJ inscrito na Dívida Ativa da União. A pessoa física ou jurídica incluída no Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal (CADIN) não pode abrir conta bancária e nem fazer empréstimos em bancos; não pode utilizar o limite do seu cheque especial e fica impedida de participar de licitações públicas. Até a restituição do Imposto de Renda, caso tal contribuinte inadimplente tenha a receber, somente é liberada após o pagamento total do débito ou de seu parcelamento.
Entretanto, quando o “inadimplente” é poderoso o bastante para contratar escritórios especializados em direito tributário e, não raramente, possui negócios registrados em nomes de “laranjas”, o cenário se modifica radicalmente. Às inúmeras possibilidades de recursos na Justiça para quem vive no topo da cadeia alimentar da sonegação, soma-se a conveniência do sucateamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, fator que compromete os esforços dos Procuradores da Fazenda nas ações de recuperação de créditos.
Por essas e outras, o estoque da Dívida Ativa da União, que inclui débitos tributários, previdenciários e não tributários (como multas trabalhistas), encontra-se acima dos R$ 2 trilhões e aumenta aceleradamente ano após ano.
É razoável supor que um efetivo combate à sonegação, com melhor aparelhamento dos organismos de cobrança e ajustes na legislação tributária (e penal), tornaria a sonegação menos compensadora e muito mais arriscada. Estranhamente, esses temas têm sido pouco evidenciados no debate sobre as medidas de recuperação fiscal do país e passaram longe das grandes discussões relativas à reforma da Previdência.
Agora, diante da possibilidade de termos a reforma tributária como foco da próxima grande batalha a ser travada no Congresso, abre-se ao menos uma fresta para que o combate à sonegação e a melhoria da eficiência dos instrumentos de recuperação de créditos da União sejam inseridos na pauta nacional.
Para se ter uma ideia, conforme dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o estoque de R$ 2,196 trilhões da DAU (2018) foi classificado em 4 níveis, levando em conta o grau probabilístico de recebimento, conforme a tabela 1:
Estoque por rating do devedor: | |
---|---|
A – Dívidas com alto ou médio potencial de recuperação: R$ 207.975.867.204,69 Total consolidado: R$ 2.196.690.906.136,89 |
Em uma análise bastante conservadora, somando-se apenas as dívidas classificadas como A e B, verificamos um montante de R$ 716 bilhões com razoável potencial de recuperação. Levando-se em conta esse foco probabilístico, os Procuradores da Fazenda têm concentrado as ações de cobrança, seja por meio judicial ou extrajudicial, e obtido resultados bastante significativos: somente em 2018, foram quase R$ 24 bilhões recuperados para os cofres públicos e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.
Mas quem são as pessoas e empresas que mais devem à União? Segundo a PGFN, há cerca de 4,620 milhões de devedores agregados (empresas e pessoas físicas) inscritos na Dívida Ativa da União. Destes, 28.339, o equivalente a apenas 0,6% do total, respondem por débitos individuais que superam R$ 15 milhões e, por isso, foram categorizados como Grandes Devedores. Quando relacionamos a proporção do estoque total da DAU, de R$ 2,196 trilhões, fica ainda mais claro o impacto dessa “elite devedora” que, conforme o gráfico a seguir, responde sozinha por 62% dos títulos que a União tem a receber.
Assim, ao que tudo indica, identificar os maiores devedores de tributos do país não chega a ser o mais difícil. O desafio, no entanto, está na superação de obstáculos de ordem legal, estrutural e até política que comprometem a eficiência da cobrança realizada pelos Procuradores da Fazenda Nacional. É sabido, por exemplo, que para esse privilegiado clube de devedores contumazes nunca faltam refinanciamentos extraordinários (REFIs) que excluem até 90% de juros e multas, além de benefícios fiscais sem nenhuma contrapartida. Já para os pobres, a classe média e os pequenos empresários, o arrocho fiscal segue como única e inquestionável solução.
Tudo está perdido? Não. Se por um lado temos um ciclo vicioso de injustiça fiscal imposto como fato inexorável, por outro a estagnação econômica e a toxidade do ambiente político-jurídico-institucional igualmente potencializam o surgimento de uma proposição disruptiva e renovadora, à luz da Justiça Fiscal, capaz de corrigir ou ao menos mitigar as enormes distorções estruturais que impedem o desenvolvimento sustentado de nosso país.
Sem nenhuma conotação político-partidária, no âmbito da Campanha Nacional da Justiça Fiscal - Quanto Custa o Brasil pra Você?, o SINPROFAZ assume o compromisso de discutir, com os mais diversos setores da sociedade, alternativas juridicamente viáveis e socialmente justas para o combate à sonegação e o equilíbrio fiscal e previdenciário do país, lastreadas pelo respeito à Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito.
*Procurador da Fazenda Nacional e Presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional - SINPROFAZ
1 Sonegação no Brasil – Uma estimativa do desvio da arrecadação do exercício de 2018. < https://bit.ly/2FMNr71>, Acesso em 19/07/2019
2 PGFN em Números 2019. <http://www.pgfn.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros-2014/pgfn_em_numeros_2019.pdf/view>, Acesso em 30/07/2019