Para ministro, visão do mercado não pode predominar. É preciso diálogo entre todos os envolvidos, sob risco de destruir um sistema de proteção constitucional
Desde 2006 no Tribunal Superior do Trabalho, após quase 20 anos de magistratura, o ministro Luiz Philippe Vieira de Mello Filho assumiu a vice-presidência em fevereiro. Exatamente um mês depois, em 19 de março, o TST estava fechado, por causa da pandemia. “Implementamos o trabalho remoto imediatamente”, lembra, ao avaliar que as medidas proporcionaram “dinâmica praticamente idêntica” à presencial.
Por meio do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, foi editado um ato visando a estimular ações de mediação e conciliação, “para busca de soluções mais razoáveis”, diz o ministro. O atendimento via mediações pré-processuais, além de mais informais, foi no sentido de, no meio da crise, encontrar respostas “inteligentes, sensíveis, criativas e rápidas”.
De acordo com balanço divulgado no dia 1º pela presidenta do TST, ministra Maria Cristina Peduzzi, o número de processos recebidos cresceu 15% no primeiro semestre, em relação a igual período de 2019, chegando a 198.252, e o volume de ações julgadas aumentou 2%, para um total de 162.409.
O que preocupa o magistrado, um belo-horizontino de 59 anos, é ainda anterior à pandemia, mas se intensificou com a crise sanitária. Desde o início da pandemia, foram editadas medidas provisórias que alteram direitos trabalhistas. Foram os casos das MPs 905 e 927, que acabaram “caducando”. A 936 virou lei (14.020). Tudo sob justificativa da crise, mas na sequência de uma “reforma” trabalhista recente, implementada em 2017 (Lei 13.467).
Diálogo social
Nesse contexto, as novas medidas do governo se justificam? Para o vice-presidente do TST, a questão tem problemas “de forma e conteúdo”. Diante de uma pandemia que atingiu a economia e, consequentemente, todo o mercado de trabalho, o governo deveria ter convocado representantes dos empregadores e sindicais, em busca de uma solução de caráter excepcional. Em vez disso, optou por consultar apenas um lado. O que levou, inclusive, a uma judicialização do caso no Supremo Tribunal Federal. Que também é objeto de críticas veladas, por “flexibilizar a Constituição”.
“Não teria havido essa tramitação se houvesse esse diálogo social”, afirma Luiz Philippe, referindo-se a uma “pandemia de medidas” na área trabalhista. “Todo mundo andou torto. O que deve ser macro era a solução do Estado na economia. Era necessária uma legislação excepcional? Era. Seria um pacto social, uma negociação triangular.” Um acordo envolvendo todos os interessados, avalia o magistrado, não levaria a um discussão no STF sobre direitos fundamentais.
Mas a insistência na flexibilização trabalhista já não se limita ao recorrente argumento, nunca comprovado na prática, de que é preciso mexer na lei para criar empregos. “Acho que a questão já assumiu um papel ideológico, de construção ou desconstrução do Estado”, avalia o vice-presidente do TST.
Retrocesso histórico
É a defesa do chamado Estado mínimo, que começa pela extinção do Ministério do Trabalho (“Com competências importantíssimas”), no atual governo, e continua com uma possível proposta de remuneração por hora. “Voltamos ao final do século 19, início do século 20. Você desconstrói todo um sistema democrático, protetivo, de uma Constituição que ofereceu uma pacificação”, critica o ministro.
Na contramão das necessárias medidas inclusivas, criam-se bolsões de pobreza. É a predominância do chamado mercado, como parte daquilo que o ministro chama de zombie ideas, ou “ideias zumbi”. São aquelas que a realidade já demonstrou que não funcionam, mas seguem circulando e, de forma figurativa, “devorando” cérebros. O vice do TST cita autores como Paul Krugman, Thomaz Piketty e Joseph Stiglitz, críticos ao ideário neoliberal e de acumulação. “Isso não é comunismo, não é socialismo, é simplesmente ter uma economia solidária.”
É preciso ir contra esse “determinismo econômico”, a visão do mercado a todo custo. “Você tem que distribuir a riqueza para que ela rode”, diz. “O trabalhador consome e , com isso, movimenta a economia.” Ele lembra do New Deal, aplicado nos Estados Unidos para superar a crise de 1929.
Mercadoria barata
O magistrado identifica um “retorno histórico” à visão do trabalho como mercadoria. “E uma mercadoria barata. E descartável. Há um afastamento enorme dos valores constitucionais”, afirma. O artigo 1º da Carta de 1988 trata o trabalho como um dos valores sociais fundamentais para a república e o Estado democrático de direito.
Luiz Philippe observa que a economia já vinha mal antes da pandemia. “E com menos renda, mais vai demorar para se recuperar. A Bolsa pode estar lá em cima. A desigualdade é um entrave”, diz, enfatizando o papel da Justiça do Trabalho, de busca de equilíbrio. “Se eu tiver uma massa de pessoas desprovida de recursos, não vou ter um estado pacífico. Então, a Justiça do Trabalho tem essa finalidade social. O trabalho é algo fundamental para a pessoa humana, porque você só se sente útil quando trabalha.”
O ministro avalia que o trabalho remoto veio para ficar, mas faz ressalvas. “É uma solução engenhosa, mas que precisa ter um justo tratamento jurídico. Não é jornada, é meio de execução da atividade”, observa. É preciso discutir medidas de proteção à saúde, por exemplo. Foi uma mudança importante, que permitiu reduzir distâncias e teve efeitos na mobilidade urbana e na diminuição da poluição, mas deve ser vista de forma abrangente. A legislação atual é “insuficiente, fraca e frágil”, considera.
A recente greve dos entregadores de aplicativos mostra uma situação nova mundo do trabalho, mas o ministro prefere não entrar no mérito legal da questão. Ele argumenta que o tema ainda deverá chegar ao TST. Por enquanto, há decisões divergentes de primeira e segunda instâncias.
FONTE: REDE BRASIL ATUAL