IMAGEM/ARTE: CÂMARA DOS DEPUTADOS
Tudo bem simplificar, mas reforma tributária deveria ser de alto a baixo, escreve José Paulo Kupfer
É impressão digital da sociedade
Sistema brasileiro entre os piores
Há espaço para aumentar a carga
A reforma tributária, que começava a andar na Câmara dos Deputados, foi abalroada pelo presidente Arthur Lira (PP-AL). Com mão autoritária, nem esperou o relator da PEC 45/2019 (íntegra – 484 KB), seu correligionário Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), terminar a leitura do substitutivo que elaborara, para extinguir a comissão mista criada com o objetivo de encaminhar a tramitação do tema no Congresso.
Filigranas regimentais podem ser invocadas, mas, na prática, com seu gesto, Lira implodiu a reforma em tramitação, desagradando deputados, senadores e secretários de Fazenda. Ribeiro tentava pôr de pé uma reforma simplificadora, que substituiria uma fieira de tributos sobre bens e serviços por um único, em duas fases. Primeiro, juntando as contribuições federais PIS e Cofins num único Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), e incorporando, depois de dois anos, o estadual ICMS e o municipal ISS.
É bom, é ruim, qual é o perde-ganha setorial, e os impostos diretos sobre renda e patrimônio, quando vão ser considerados e em que medida? Toda essa discussão, com origem nas duas propostas que entraram em 2019, uma na Câmara, outra no Senado, foi para as gavetas. A ver como Lira vai conseguir enfiar goela abaixo do Congresso a reforma fatiada, começando apenas com tributos federais, pretendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
O sistema tributário coleciona reformas e alterações, com resultados desalentadores. A carga tributária total, tomada em seu agregado, é tão alta quanto a de países ricos, quando não as supera, e se situa muitos degraus acima da tributação em economias de porte semelhante à da brasileira. Nem por isso alivia as dificuldades fiscais.
É que sua estrutura termina funcionando na contramão dos sistemas tributários normais. Com tributos de má qualidade, taxa mais quem pode contribuir menos, acentuam desigualdades de renda. Não satisfeito, o sistema afeta, negativamente, a competitividade da economia. Além de tudo, forma uma verdadeira macarronada de regras e normas, empilhadas em camadas, que torna difícil tanto cobrar quanto pagar os devidos impostos.
Para resumir, se os maiores sábios tributaristas do mundo fossem trancados numa sala e só pudessem sair quando tivesse produzido o pior sistema tributário possível, não teriam conseguido um tão ruim quanto o brasileiro. Como todo sistema tributário, o nosso também é uma impressão digital da sociedade extremamente desigual que o concebeu e estruturou.
Como se chegou nessa situação? A resposta mais geral é a de que, no Brasil, o subdesenvolvimento não é um acidente de percurso, mas um projeto. O conflito distributivo tem sido aqui resolvido no tapa por elites predadoras e lobbies variados, na base do “meu pirão primeiro”.
Um exemplo recentíssimo, mas apenas um entre tantos numa longa história através dos tempos, ajuda a entender como os tributos arrecadados de quem menos tem vão sendo desviados para quem menos precisa. Uma portaria do ministério da Economia, comandada pelo ultra-reformista ministro Paulo Guedes –aquele que já foi taxado de “tigrão com os pobres e tchutchuca com os ricos”–, publicada na 6ª feira, 30 de abril, permitiu que servidores públicos pudessem furar o teto constitucional, e receber proventos acima de R$ 39,2 mil mensais. Calcula-se que, no total, já em 2020, serão mais de R$ 180 milhões retirados das receitas públicas e injetados, diretamente, no bolso de uns tantos beneficiários.
Reportagem muito completa do G1 mostra como alguns servidores aposentados, mas exercendo cargos em comissão no governo, poderão somar os dois proventos, mesmo se o total acumulado superar o teto constitucional. Militares que lotam, depois de Bolsonaro, cargos comissionados no serviço público, estão entre os beneficiários.
Segundo a reportagem, este seria o caso, por exemplo, do general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, do general Walter Braga Netto, ministro da Defesa, e até do presidente Jair Bolsonaro. Beneficiados pelo que está sendo chamado de “teto duplex”, Ramos deixaria de devolver R$ 27 mil reais mensais, Braga Netto, poderia ficar com R$ 22,7 mil e Bolsonaro, R$ 2,3 mil a mais por mês.
Obviamente, a portaria só favorece quem aufere renda elevada, acima de 30 salários mínimos. A carga tributária para esta faixa superior de contribuintes fica em torno de 25% da renda. Já os contribuintes com renda até 2 salários mínimos contribuem com metade de seus ganhos. No agregado, porém, a carga tributária equivale a 32% do PIB, quase tão alta quanto a de países ricos e cerca de 10 pontos acima de países com renda per capita semelhante à do Brasil.
Em março de 2020, a Receita Federal divulgou um estudo comparativo da carga tributária brasileira com a de países da OCDE, com dados de 2017. Em relação aos tributos sobre bens e serviços, em termos proporcionais, o Brasil ocupava a quarta posição entre os maiores arrecadadores, num grupo de 35 países. Já em relação a lucros e ganhos de capital, a carga brasileira ocupava a 29ª posição entre os 35 países comparados. No caso da taxação de propriedades, o Brasil ficava no 20º lugar entre 35 países.
Está claro que esse modelo de distribuição tributária não só configura flagrante injustiça fiscal e social como restringe a arrecadação e, portanto, inibe e fragiliza a ação do Estado, inclusive na indução ao investimento privado. Cobrando mais de quem pode contribuir menos, o bolo da arrecadação tende a crescer menos.
São tantos os defeitos do sistema tributário brasileiro que é enorme o espaço para lhe conferir mais equilíbrio e eficiência. E, sim, aumentar a carga tributária, simplificando a cobrança de impostos e fazendo os mais ricos contribuírem, proporcionalmente, como contribuem seus semelhantes de estrato de renda, nos respectivos países.
FONTE: PODER 360