Valor equivale a 30% do seu déficit previsto para este ano

O Brasil é um país em que ricos fingem ser pobres, presidiários reconhecem a paternidade de filhos de mulheres que nunca viram, crianças recebem licença-maternidade, bebês indígenas são adotados e esquecidos em suas tribos, homens assassinam esposas fictícias e ciganos mudam de identidade como trocam de cidade. O Brasil é um país que paga por tudo isso. E a conta imposta por tanta “criatividade” à Previdência Social é alta. Uma fatura maior que o governo supunha: pode chegar a R$ 56 bilhões por ano. Ao cruzar dados de uma força-tarefa — formada por Secretaria de Previdência, Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal e os ministérios do Trabalho e do Desenvolvimento Social — e pedir uma análise de especialistas, o Tribunal de Contas da União (TCU) chegou à conclusão de que a “percepção de irregularidades” é que um, em cada dez benefícios, é pago com erros ou por fraude.
 
Com um rombo recorde previsto para este ano, a Previdência é considerada um empecilho para o Brasil voltar a crescer. Em 2017, devem faltar R$ 185,8 bilhões para fechar a conta. Sem fraudes e erros, esse déficit poderia ser 30% menor. No entanto, a fiscalização, apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, ainda está bem longe de conseguir impedir tudo o que desfalca o sistema de aposentadorias e benefícios assistenciais do país.
 
Essas fraudes e erros ocorrem no momento em que a sociedade se confronta com o dilema de reformar a Previdência, ou começar a cortar despesas em áreas essenciais. Tudo porque falta dinheiro. Mas foram as contribuições pagas pelos brasileiros que bancaram a luxuosa jornada de uma família de ciganos pelo país. O ponto de partida foi uma das áreas mais pobres do Brasil: o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. De cidadezinha em cidadezinha, eles requisitaram uma coleção de certidões de nascimento tardias. Com elas, conseguiram vários benefícios, entre eles, aposentadorias rurais. A pobreza dos lugares por onde o grupo passou contrastava com as caminhonetes de luxo usadas para trilhar o caminho. Foram presos em Sergipe. Os 11 parentes foram condenados por estelionato contra a Previdência.
 
“BOOM” POPULACIONAL EM GOIÁS
 

Conseguir certidão de nascimento na fase adulta é uma estratégia disseminada pelo país. Tão comum que é responsável até por falsos efeitos populacionais. Na cidadezinha de Marzagão, em Goiás, houve um boom populacional que seria recorde, não fosse completamente fictício. No município de 2.200 habitantes, foram registradas 1.200 certidões de nascimento tardias. A concessão de vários benefícios de Amparo Social ao Idoso para pessoas que tiraram o registro na fase adulta, no mesmo cartório da cidade, chamou a atenção da Polícia Federal, que deu início a uma investigação.

No caso de Marzagão, dois funcionários públicos estavam envolvidos, e o processo ainda está em andamento. A fraude custou R$ 7,5 milhões aos cofres públicos. O fato de a Polícia Federal ter descoberto o problema impediu o gasto de outros R$ 14 milhões. Ao todo, entre 2003 e 2017, a PF identificou fraudes com impacto de R$ 5 bilhões nos cofres públicos.
 
O “SAFADÔNIO” DE COPACABANA
 
A força-tarefa também mapeou delitos por todo o país. Foi identificado, por exemplo, que o Maranhão é o estado com o maior número de fraudes. Lá, as mulheres são as brasileiras que mais recebem auxílio-maternidade. Em um dos casos, o benefício era pago a uma menina de 8 anos.
 
— Os recursos são escassos, e cada centavo desviado deixa de ir para quem realmente precisa. Além de onerar o sistema para todos os contribuintes — ressalta Fábio Granja, secretário responsável pelo estudo feito no TCU.
 
Em alguns casos, o deboche dos fraudadores da Previdência chamou atenção dos investigadores da força-tarefa. Há exemplos em que a sensação de impunidade é tão grande que não há o menor cuidado em disfarçar. Episódios no Rio de Janeiro são os mais lembrados nesse sentido. Além de alugar velhinhos para sacarem benefícios de aposentados que não existiam, um quadrilha que atuava em Copacabana zombava do sistema ao criar identidades falsas com nomes pitorescos como, por exemplo, Safadônio. Outro larápio fictício foi batizado de Mandrake. Tanto Safadônio quanto Mandrake tinham CPF, RG e comprovante de endereço como qualquer cidadão respeitável.
 
No Acre, uma quadrilha de advogados tinha toda uma estratégia para arrancar dinheiro do sistema. Procurava mães pobres e prometia uma renda para ajudar na criação dos filhos. Depois, arrumava um presidiário disposto a assumir a paternidade da criança. Após o falso reconhecimento de paternidade, o dinheiro do auxílio-reclusão — pago pelo governo às famílias dos detentos — era dividido em três partes: para o preso, para a mãe e para o advogado.
 
— Quando viram que a estratégia dava certo, começaram a fazer em várias cidades — conta uma fonte a par da investigação, sob a condição de anonimato.
 
Já no Mato Grosso do Sul, advogados funcionavam como uma espécie de agência de adoção de crianças indígenas. Eles conseguiam formalizar a adoção dos pequeninos para beneficiários da fraude, que requisitavam um benefício ao qual crianças indígenas têm direito.
 
Em todo o país, vêm do campo as principais fraudes. É na previdência rural que surge a maior quantidade de crimes, porque, para pedir a aposentadoria, é preciso apenas uma declaração de que o pretendente foi trabalhador na lavoura por 15 anos. Envolvidos no processo, por fornecerem esse documento de comprovação, alguns sindicatos rurais também estão na mira da força-tarefa. Alguns representantes dessas entidades já foram presos e vários outros são investigados.
 
— Tentar fazer de algo social um benefício estritamente privado de modo ilícito é uma coisa que choca — comenta o secretário de Previdência Social, Marcelo Caetano, que espera que as ações da Polícia Federal assustem mais daqui para frente. — Esse trabalho é muito relevante, porque deixa claro que há o risco de ter uma operação da PF em cima de você. O crime não compensa.
 
PENTE-FINO CANCELOU 159 MIL BENEFÍCIOS
 
Paralelamente, o governo tem realizado um pente-fino para melhorar a gestão dos programas sociais e de benefícios previdenciários. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o objetivo é garantir que os recursos públicos cheguem a quem realmente precisa. A economia anual estimada até agora com a revisão dos benefícios foi de R$ 2,6 bilhões.
 
Até 14 de julho, foram realizadas 199.981 perícias com 159.964 benefícios cancelados. A ausência de convocados levou ao cancelamento de outros 20.304 benefícios. Além disso, 31.863 benefícios foram convertidos em aposentadoria por invalidez; 1.802, em auxílio-acidente; 1.058, em aposentadoria por invalidez com acréscimo de 25% no valor do benefício; e 5.294 pessoas foram encaminhadas para reabilitação profissional. Ao todo, 530.191 benefícios de auxílio-doença serão revisados.
 
Fonte: Extra