IMAGEM: LOGÍSTICA PORTUÁRIA

Savannah, na Geórgia, sofre com ruptura na cadeia global de fornecimento e falta de contêineres

Como blocos de brinquedo despejados do céu, quase 80 mil contêineres de carga estão empilhados em várias configurações no porto de Savannah, na Geórgia (sudeste dos Estados Unidos). São 50% a mais que o número habitual.

As caixas de aço esperam por navios para levá-las até seus destinos finais ou caminhões para transportá-las até armazéns, os quais já estão abarrotados. Cerca de 700 contêineres foram deixados pelos donos no porto, às margens do Rio Savannah, há um mês ou mais.

"Eles não estão vindo retirar suas cargas", queixou-se Griff Lynch, diretor-executivo da Autoridade dos Portos da Geórgia. "Nunca tivemos o pátio tão cheio assim."

Enquanto ele fala, mais um navio desliza silenciosamente na direção de um cais livre —o Yang Ming Witness, de 1.200 pés de comprimento (360 metros), com seu convés lotado de contêineres com roupas, calçados, eletrônicos e outros produtos fabricados na Ásia. Guindastes imensos logo puxam as milhares de caixas do navio— mais carga que precisa ser guardada em algum lugar. 

"Com certeza, o nível de estresse nunca foi tão grande", disse Lynch.

É o que acontece na grande disrupção da cadeia de suprimentos: estão ficando sem espaço para colocar as coisas no terceiro maior porto de contêineres dos Estados Unidos, no sudeste do país. O problema também afeta diretamente o comércio no Brasil.

Enquanto os principais portos enfrentam um acúmulo inacreditável de carga, o que um dia pareceu um fenômeno temporário —um congestionamento que acabaria se dissolvendo— é cada vez mais visto como uma nova realidade que poderá exigir um remodelamento substancial da infraestrutura mundial de frete marítimo.

Enquanto o porto de Savannah luta para resolver o atraso, Lynch obrigou com relutância navios a esperar ao largo por mais de nove dias. Em uma tarde recente, mais de 20 navios estavam parados na fila, ancorados a até 17 milhas (27 quilômetros) junto à costa atlântica.

Essas filas se tornaram comuns no mundo todo, dos mais de 50 navios emperrados no Pacífico perto de Los Angeles na semana passada a números menores que boiavam perto de terminais na região de Nova York e centenas à espera em portos da China.

O turbilhão na indústria de navegação e a crise geral nas cadeias de suprimentos não estão dando sinais de diminuir. Representam uma constante fonte de preocupação para toda a economia global, desafiando suposições antes esperançosas de um retorno vigoroso do crescimento quando as vacinas reduzissem a disseminação da pandemia.

A disrupção ajuda a explicar por que as fortunas industriais da Alemanha estão encolhendo, por que a inflação se tornou motivo de preocupação para os banqueiros centrais e por que as indústrias americanas agora esperam um recorde de 92 dias em média para reunir as peças e materiais de que precisam para fabricar seus produtos, segundo o Instituto de Gestão de Suprimentos.

Na superfície, o transtorno parece ser uma série de faltas de produtos entrelaçadas. Como os contêineres de carga estão escassos na China, fábricas em todo o mundo que dependem de peças e produtos químicos chineses tiveram de limitar sua produção.

Mas a situação no porto de Savannah confirma que há uma série mais complexa e insidiosa de problemas sobrepostos. Não é apenas a escassez de produtos. É que os produtos estão parados nos lugares errados e separados de onde deveriam estar por barreiras persistentes e em constante mudança.

A falta de produtos acabados no varejo representa o outro lado dos contêineres empilhados em navios parados no mar ou nas margens de rios. O acúmulo nos armazéns é em si um reflexo da escassez de motoristas de caminhão necessários para transportar os produtos a seu próximo destino. 

Para Lynch, as frustrações são reforçadas por uma sensação de impotência diante de circunstâncias fora de seu controle. Por mais que ele faça para administrar suas docas ao longo do lamacento Rio Savannah, não pode controlar a confusão que se desenrola nas rodovias, nos armazéns, em portos do outro lado do oceano e em fábricas em cidades do mundo todo.

"A cadeia de suprimentos está sobrecarregada e inundada", disse Lynch. "Não é sustentável nesta altura. Tudo está fora da ordem."

Nascido e criado em Queens, em Nova York, o que demonstra com seus modos sem rodeios, Lynch, 55, passou a vida profissional cuidando das complexidades logísticas do transporte de carga marítimo. ("Na verdade eu queria ser capitão de rebocador", disse ele. "Só tinha um problema: eu fico mareado.")

Agora ele luta com uma tempestade de intensidade e contornos incomparáveis, uma tempestade que efetivamente ampliou a extensão dos oceanos e aumentou o risco das viagens marítimas.

No mês passado, seu pátio abrigava 4.500 contêineres que estavam empacados nas docas há pelo menos três semanas. "Isso já beira o ridículo", disse ele.

O fato de essas tensões existirem até em Savannah confirma a magnitude do problema. O terceiro maior porto de contêineres nos EUA, depois de Los Angeles-Long Beach e Nova York-Nova Jersey, Savannah tem nove berços de atracação para navios porta-contêineres e terreno à vontade para se expandir.

Para aliviar o congestionamento, Lynch está conduzindo uma ampliação de US$ 600 milhões (R$ 3,3 bilhões). Está trocando um berço por um capaz de acomodar os maiores porta-contêineres. Está ampliando o pátio de estocagem em 323 mil m2, abrindo espaço para mais 6.000 contêineres. Está aumentando o pátio ferroviário de cinco para 18 vias, para permitir a entrada de mais trens, como alternativa ao transporte rodoviário.

Mas embora Lynch considere o desenvolvimento imprescindível, sabe que a expansão das instalações por si só não resolverá seus problemas.

"Se não tiver espaço ali", disse, olhando para as pilhas de contêineres, "não adianta eu ter 50 berços."
Muitos dos contêineres estão em pilhas de cinco, dificultando o trajeto dos guindastes entre as torres para levantar as caixas necessárias quando os caminhões chegam para levá-las.

Nesta tarde, sob um sol inclemente, o porto está prestes a bater seu recorde de atividade em um único dia —mais de 15 mil caminhões entrando e saindo. Mas a pressão aumenta. Um rebocador conduz mais um navio até o cais—o MSC Agadir, chegando do Canal de Panamá--, com mais carga que deve ser depositada em algum lugar.

Nas últimas semanas, o fechamento de um terminal gigante de contêineres na cidade chinesa de Ningbo aumentou os atrasos. O Vietnã, um polo da indústria de confecções, ficou fechado durante vários meses por causa de um surto de Covid-19. O menor volume de carga que parte da Ásia poderá dar um alívio aos portos dos Estados Unidos, mas Lynch rejeita essa frase.

"Seis ou sete semanas depois, os navios chegam todos ao mesmo tempo", disse ele. "Não adianta."

No início deste ano, enquanto os preços do frete disparavam e os contêineres escasseavam, o problema foi amplamente considerado um resultado momentâneo dos lockdowns por causa da pandemia. Com escolas e escritórios fechados, os americanos estavam se abastecendo de equipamentos para escritórios e academias de ginástica domésticos, contando muito com as fábricas da Ásia. Quando a vida recomeçou, a navegação global deveria ter voltado ao normal.

Mas seis meses depois o congestionamento piorou, com quase 13% da capacidade de carga marítima mundial prejudicada por atrasos, segundo dados reunidos pela Sea-Intelligence, firma de pesquisas do setor na Dinamarca.

Muitas companhias hoje assumem que a pandemia alterou fundamentalmente a vida comercial de maneira permanente. Pessoas que talvez nunca comprassem alimentos ou roupas pela internet— especialmente idosos— pegaram o gosto pela conveniência, forçados a se adaptar ao vírus mortal. Muitas provavelmente conservarão o hábito, mantendo a pressão sobre a cadeia de suprimentos.

"Antes da pandemia, poderíamos imaginar mamãe e papai clicando para comprar um móvel?", disse Ruel Joyner, dono da 24E Design, uma loja-butique de móveis que fica num prédio de tijolos no bonito bairro histórico de Savannah. Suas vendas online triplicaram durante o último ano.

Além dessas mudanças de comportamento, a disrupção da cadeia de suprimentos impôs novas dificuldades.

Joyner, 46, desenha seus móveis em Savannah, mas conta com fábricas na China e na Índia para produzir muitas de suas peças. O tumulto nos mares atrasou suas entregas, limitando as vendas.

Ele mostrou uma poltrona reclinável de couro marrom feita para ele em Dallas (Texas). A fábrica está lutando para conseguir o mecanismo reclinável de seu fornecedor na China.

"Antes conseguíamos os materiais em 30 dias, mas agora estão nos dizendo seis meses", disse Joyner. Os clientes ligam para reclamar.

Sua experiência também salienta como os atrasos e a falta de produtos se tornaram uma fonte de preocupação além da concorrência leal. Gigantes do varejo como Target e Home Depot estocaram produtos em armazéns e às vezes fretaram seus próprios navios. Essas opções não estão disponíveis para as pequenas e médias empresas.

Os gargalos costumam causar mais gargalos. Tantas empresas encomendaram a mais e mais cedo, especialmente se preparando para a temporada de alto consumo no fim do ano, que os armazéns estão lotados. Por isso os contêineres se empilham no porto de Savannah.

A equipe de Lynch—normalmente concentrada em suas próprias instalações— dedicou tempo a procurar armazéns com espaço vago no interior, tentando dar aos clientes opções alternativas para sua carga.

Recentemente, uma grande empresa de varejo encheu completamente seu espaço de armazenagem de quase 280 mil metros quadrados. Com seus contêineres empilhados no pátio, o pessoal do porto trabalhou para despachar a carga por trem para Charlotte, na Carolina do Norte, onde o varejista tinha mais espaço.

Essa criatividade poderá oferecer um alívio modesto, mas as exigências do porto estão se intensificando.
Em uma tarde nublada no final de setembro, o Natal de repente pareceu bem próximo. Os contêineres amontoados nas margens do rio certamente estavam cheios de decoração natalina, assadeiras, presentes e outros materiais para a maior onda de consumo da Terra.

Chegarão às lojas em tempo? "Essa é a pergunta que todo mundo faz", disse Lynch. "Acho muito difícil responder."


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

FONTES: THE NEW YORK TIMES/FOLHA DE S.PAULO