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O projeto de reforma trabalhista em curso no Congresso Nacional foi apresentado com base em três pressupostos: flexibilização das normas para aumento da formalização e alargamento da base previdenciária, prevalência da negociação coletiva sobre o direito legislado e diminuição da insegurança jurídica nas relações de trabalho. De acordo com o Poder Executivo e as lideranças parlamentares que patrocinam a reforma, as alterações na CLT não eliminariam ou prejudicariam direitos dos trabalhadores, pois o seu escopo seria o de “modernizar” as relações entre capital e trabalho.

Uma análise acurada do PLC 38/17, no entanto, revela que a reforma é totalmente inconsistente e incongruente com seus supostos fins, na medida em que o projeto contém dispositivos que produzirão efeitos exatamente contrários aos desejados por aqueles que o sustentam: a reforma trabalhista provocará a “fuga” da carteira assinada (diminuindo a base das contribuições sociais), enfraquecerá a negociação coletiva e o poder de barganha dos sindicatos e aumentará consideravelmente a insegurança jurídica nas relações laborais. E no seu conjunto, resultará em perda considerável de direitos dos trabalhadores, com claro retrocesso social. Para concluir isto, basta analisar os seguintes pontos do projeto de lei:

Informalidade
Os autores do projeto de reforma trabalhista defendem a necessidade de flexibilizar o contrato para facilitar a formalização. Ocorre que em alguns pontos o projeto em questão vai muito além da flexibilização, pois chega a retirar a natureza trabalhista da relação entre patrão e empregado, convertendo-a em um contrato de natureza civil. Veja-se o que dispõe o artigo 442-B deste projeto: “A contratação do autônomo, cumpridas todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3o. desta CLT”. Na prática, isto significa que o empregador poderá contratar o trabalhador como autônomo (sem direitos sociais como férias, limites de jornada e 13º salário), e ainda que este compareça todo dia a empresa, bata cartão de ponto e cumpra ordens, mesmo assim, ele não terá carteira assinada e, pior, não poderá questionar esta fraude na Justiça do Trabalho (o que é uma clara inconstitucionalidade pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição). A consequência prática é evidente: diminuição de registro em carteira e evasão de contribuição para o INSS. É chocante perceber que sequer nos EUA (país com legislação laboral flexível sempre invocado pelos arautos da reforma) isto seria admissível, pois em qualquer situação trabalhadores autônomos, mesmo com contrato formal assinado (independent contractors) podem questionar no judiciário federal a sua condição de empregado (employee) de modo a invocar a nulidade do contrato civil e incidência da lei trabalhista (Federal Labor Standards Act – FLSA). Este entendimento é assegurado pela Suprema Corte dos EUA desde 1944 a partir do caso NLRB v. Hearst Publications (322, U.S. 111).

A figura do trabalho intermitente (art. 452-A) é outra mal elaborada forma alternativa de relação trabalhista, pela qual os trabalhadores, embora com contrato em vigência, poderão ficar semanas ou meses sem trabalho efetivo, aguardando um chamamento do empregador. É uma espécie de “bico” formalizado, cujas consequências para a previdência social os autores do projeto sequer tiveram o cuidado de analisar (e nem mesmo adentramos aqui no impacto que a incerteza gerará para a vida social dos trabalhadores). Os períodos em que o empregado estiver aguardando ser chamado, no qual em tese está formalmente vinculado à empresa, mas sem remuneração, contam ou não como tempo de serviço para fins de aposentadoria? Mas como pode haver tempo de contrato de trabalho formal sem contribuição? O projeto é inconsistente e incongruente neste ponto.

Além disso, o PLC 38/17, incompreensivelmente, permite ainda formas de negociação individual extrajudicial entre patrões e empregados a respeito de créditos devidos (conforme arts. 477-B, 507-A, 507-B, 652, “f), o que tem como consequência evidente um incentivo à informalização das relações de trabalho e respectiva sonegação fiscal. Se o empregador sabe de antemão que pode evadir-se da jurisdição trabalhista contenciosa, tenderá a estabelecer relações informais e a pagar valores “por fora”, que poderão ser negociados diretamente com o empregado, sem assistência sindical, ao término do contrato. O empregado terá a ilusão de que é melhor receber o dinheiro “na mão” de um acordo extrajudicial do que recolher sua parte para o fisco e para o INSS. É o estado incentivando a sonegação de patrão e empregado. O impacto para as contas da previdência será enorme.

Enfraquecimento da negociação coletiva
Qualquer reforma que deseje com sinceridade a prevalência do negociado sobre o legislado deveria ter como premissa o fortalecimento das entidades sindicais e do seu poder de barganha. Assim, seria de se supor que a extinção do financiamento compulsório das entidades sindicais (o que é desejável e necessário) viesse acompanhado de uma proposta de fim da unicidade e plena liberdade de organização sindical, o que abriria um “mercado” de competição entre os sindicatos pela confiança do trabalhador, situação que os dotaria de efetiva representatividade e poder. Esta sim seria uma proposta verdadeiramente “liberal” (no seu sentido clássico) para a reorganização da ordem sindical. Sem o imposto sindical e mantida a unicidade, tem-se o pior dos mundos para os trabalhadores: os sindicatos ficam sem recursos e sem representatividade efetiva. As entidades sindicais deixarão de ser “cartórios ricos” para se transformarem em “cartórios pobres”.

Mas o grande perigo para a vida sindical é a concepção que a reforma adota para regulamentar o dispositivo constitucional sobre representação dos trabalhadores na empresa (Título IV-A do projeto). Ela simplesmente afasta por completo os sindicatos do processo de organização e eleição dos trabalhadores para as comissões de empresa. Antes de mais nada, é evidente que o dispositivo é flagrantemente inconstitucional, pois o STF já decidiu que toda e qualquer comissão de trabalhadores organizada dentro da empresa deve contar com participação da entidades sindicais (MC/ADI 1861). Porém, o mais grave é que a proposta não assegura aos representantes dos trabalhadores plena estabilidade no emprego para o exercício da representação de natureza sindical, pois estabelece apenas uma garantia precária, permitindo que o empregador despeça o representante dos trabalhadores por motivo “disciplinar, técnico, econômico ou financeiro” (art. 510-D, parágrafo terceiro). Ou seja, o projeto de reforma cria uma representação sindical “fantoche” e não lhe confere qualquer poder efetivo de barganha, deslegitimando a representação sindical oficial. Em outros termos, fragiliza a representação sindical como um todo e diminui o poder de barganha dos trabalhadores, o que é totalmente incoerente com o objetivo da reforma de dar prevalência à negociação coletiva.

E não é só: o mais incongruente de tudo é a possibilidade, em diversos pontos do projeto, especialmente os que tratam de jornada de trabalho (alterações no art. 59 da CLT), de permitir que os trabalhadores celebrem acordos individuais, sem assistência sindical, para o afastamento das normas protetivas. Além disso, o PLC 38/2017 retira dos sindicatos a prerrogativa de assistência na rescisão de empregados com mais de um ano de contrato (revogação do parágrafo primeiro do art. 477) e inviabiliza a atuação do sindicato nas demissões coletivas (art. 477-A).

Outra forma de esvaziamento da representação sindical é a retirada da proteção dos acordos coletivos em relação aos trabalhadores de nível superior que ganham o equivalente a mais do que duas vezes o teto de benefícios da previdência (parágrafo único inserido no art. 444 da CLT). Isto significa na prática que categorias inteiras como a dos aeronautas e médicos poderão ser pressionados individualmente pelos patrões a aceitar condições menos favoráveis do que as garantidas pelos sindicatos. Profissionais que lidam com a vida e segurança das pessoas terão piores condições de trabalho, o que é um risco para toda a sociedade.

Insegurança Jurídica
Antes de mais nada, é preciso observar que o projeto, do ponto de vista jurídico, é tecnicamente ruim e débil. Parece ter sido produzido de afogadilho por assessores empresariais sem conhecimento do Direito, para aproveitar o clima político congressual favorável à contenção de direitos sociais. O projeto possui lacunas, contradições e incoerências, como já apontado acima, e contém inúmeras potenciais inconstitucionalidades, tanto no direito material, como no direito processual – especialmente, neste caso, a violação frequente ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Estes fatores, por si só, aumentarão a judicialização das relações do trabalho, contrariando o que seria um dos propósitos específicos da reforma.

Mas o que de fato vai aumentar sensivelmente a insegurança jurídica nas relações de trabalho é a tentativa de impor uma camisa de força à uniformização da jurisprudência, pela quase inviabilização do papel do TST em produzir súmulas (conforme alterações propostas no art. 702, “f” da CLT). É conhecida a crítica patronal de que a mais alta corte trabalhista estaria “legislando” a pretexto de editar súmulas de sua jurisprudência – a despeito de que a maior parte dos verbetes sumulares em direito material seja francamente favorável ao empregador! É bem verdade que esta crítica por vezes é procedente, pois não raro o TST promove “sessões” de revisão da sua jurisprudência que se assemelham mais a um debate legislativo do que a uma reunião de julgamentos consolidados.

Todavia, é uma ingenuidade muito grande acreditar que a inibição do poder de editar súmulas (tamanha a rigidez dos requisitos para sua aprovação) vai contribuir para o aumento da segurança jurídica. Isto é uma ideia de quem não conhece minimamente o mundo do direito e o funcionamento do sistema de justiça. Chega a ser bizarro o disposto no parágrafo 3o., inserido no art. 4o. da CLT, de que as súmulas “não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações previstas em lei”. Qualquer estudante de direito informado sabe que é impossível estabelecer aprioristicamente qual é o ponto a partir do qual a interpretação judicial restringe ou cria um direito. E além do mais o dispositivo é completamente inócuo, pois afinal quem vai interpretá-lo (dizendo se houve ou não inovação no direito por atividade hermenêutica) é o próprio judiciário!

E se o poder do TST de uniformizar a jurisprudência for reduzido exponencialmente, como propõe a reforma, como se resolverão os conflitos de entendimento entre os tribunais regionais e dentro do próprio TST? Simplesmente não serão resolvidos e patrões e empregados encontrarão jurisprudências divergentes para todos os gêneros e gostos, o que evidentemente só aumentará a insegurança jurídica entre capital e trabalho. A solução apresentada é completamente amadorística.

Retrocesso social
Por estas razões, é difícil aceitar o discurso oficial de que a proposta trabalhista vai “modernizar” a legislação trabalhista, quando ela claramente cria “válvulas de escape” que retiram as proteções mínimas do direito e da Justiça do Trabalho, aumentam a informalidade, diminuem a base de contribuição da previdência e fragilizam o poder de negociação coletiva dos sindicatos. Não é possível acreditar que a mitigação das garantias legais ao contrato de trabalho e do poder dos sindicatos é algo “moderno”, especialmente em um país onde as relações capital-trabalho são tradicionalmente autoritárias. Estas são questões sobre as quais os Senadores da República deveriam refletir antes de votar açodadamente um projeto tão mal elaborado que não resiste a qualquer análise econômica e jurídica minimamente séria.

Cássio Casagrande*

(*) Doutor em ciência política, professor de Direito Constitucional da graduação e do mestrado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Direito do Trabalho.