Medidas de ajuste fiscal focadas na redução do gasto público com o pessoal ativo e inativo, sob o argumento de que o crescimento dessa despesa é insuportável e desproporcional, invertendo as prioridades governamentais, mostram-se não somente falaciosas, como atentatórias à verdade dos fatos.
Luiz Alberto dos Santos*
A evolução da despesa com pessoal, nos períodos dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso (FHC), Luiz Inácio Lula da Silva (LULA) e Dilma Rousseff (DILMA), é um tema que demanda exame acurado, haja vista as diferentes orientações adotadas nesses períodos em relação ao pessoal civil e militar. Mais do que isso, é importante observar que o comportamento desse componente da despesa está longe de ser a causa de desequilíbrios fiscais, no âmbito da União, verificados a partir de 2015.
Desde 1998 até 2015, o país vinha realizando superávits primários. Em 2016, essa sequência foi interrompida, passando a se verificar déficits primários e a adoção de medidas de contenção do gasto público para a sua redução:
Vale lembrar que, até 1998, inexistia, na Constituição, o comando constitucional prevendo a anualidade obrigatória da revisão geral. Mesmo a sua inclusão, pela EC 19/98, dando nova redação ao art. 37, X, não foi respeitada, embora a evolução da despesa não tenha sido afetada de forma irremediável pela omissão, dada a adoção, desde 2000, de uma política que promoveu reajustes seletivos e diferenciados, mas que, intensificada a partir de 2004, contemplou a totalidade do serviço público com reajustes até mesmo superiores à inflação no período 1995-2003.
Essa solução se impôs pela elevada perda do poder aquisitivo das remunerações de civis e militares decorrente da inflação que, desde o final do governo Sarney, não foi adequadamente reposta, apesar da previsão legal da “data-base” anual em janeiro de cada ano (Lei 7.706, de 21 de dezembro de 1988, ainda em vigor). A elevada inflação e a parcimônia na concessão de reajustes e reposição de pessoal permitiram uma compressão do gasto com pessoal, notadamente em períodos de crise fiscal como o ocorrido entre 1997 e 2000, produzindo redução do comprometimento da receita corrente líquida com essas despesas: em 1996, o percentual de comprometimento da Receita Corrente Líquida atingiu 48,1%, e, em 2002, esse percentual foi de 32% [1]. No mesmo período, o percentual máximo permitido de comprometimento foi reduzido de 60% (Lei Complementar 82, de 1995) para 50% (Lei de Responsabilidade Fiscal - LC 101, de 2000).
Ao longo dos 8 anos de FHC 1 e 2, com efeito, a inflação medida pelo IPCA foi de 100,67%, e o aumento da despesa com pessoal foi (considerando-se a folha de 2002) de 106%. Nos períodos subsequentes, embora a um ritmo flutuante, a elevação da despesa se deu em patamares bem mais elevados, totalizando, entre 2017 e 2013, para uma inflação de 141%, uma elevação total de 288,3%.
Em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), a despesa com pessoal da União, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional e Banco Central, apresentou, no período 1995-2017, a seguinte evolução:
O que se observa é que, no período, houve uma redução dessa despesa, em relação ao PIB e, embora tenha havido anos em que ela foi mais elevada que no início do período, na sua média ela se manteve com tendência de queda.
A taxa de crescimento nos períodos presidenciais (considerando as leis aprovadas ou executadas nos respectivos mandatos) foi a seguinte:
Fonte: CONLEG/SF - Gilberto Guerzoni Filho, STN e BACEN. Elaboração nossa
Assim, em relação ao PIB, no período 1995-2003, houve redução, ou seja, a folha total cresceu menos que o PIB.
Entre 1995 e 2003 (FHC 1 e 2), a série evidencia que houve redução de mais de 8 pontos percentuais em relação ao PIB, fruto do achatamento salarial produzido pela política de reajustes seletivos e a não realização de concursos em grande parte do período, mesmo com baixo crescimento do PIB no período.
Já no período 2003-2011 (LULA 1 E 2), os aumentos concedidos e a reposição do pessoal inativo, além de novos ingressos, elevou a folha acima do crescimento do PIB. Essa relação não evidencia, porém, o crescimento real da despesa, visto que as taxas de crescimento do PIB foram mais elevadas do que as do período FHC.
No período DILMA, mesmo com a recessão e queda do PIB, a folha cresceu menos que o PIB, dada a política de contenção de reajustes adotada em parte de seu governo. Os reajustes que impactaram o orçamento de 2016 e 2017 foram enviadas ao Congresso no governo Dilma, e sua execução ainda impactou o ano de 2018 e impactará 2019 [2].
Mesmo considerando-se valores atualizados pelo IPCA, houve um crescimento real expressivo da despesa com pessoal no período 1995-2017.
Esse crescimento, porém, foi de apenas 18% na despesa com servidores civis, contra 49% no gasto com miliares, num total de 25,3% no período FHC 1 e 2.
Já no período LULA 1 e 2, o aumento foi maior para os servidores civis, totalizando 72%, e 44,5% na folha militar, totalizando 65%.
O mesmo não ocorreu no período DILMA, em que a folha total teve aumento real de cerca de 6% apenas.
Crescimento % | 2003/1995 | 2011/2003 | 2017/2011 |
Pessoal civil (inclui RPPS) | 17,64% | 71,89% | 6,68% |
Pessoal militar (inclui RPPS) | 48,67% | 44,49% | 3,92% |
Pessoal total (inclui RPPS) | 25,29% | 64,83% | 6,05% |
Se observarmos os valores correntes, ano a ano, a evolução é ainda mais expressiva, embora não reflita a perda do poder aquisitivo da moeda. Contudo, é evidente o crescimento da folha acima da inflação no período, notadamente a partir de 2004. No período de julho de 1995 (considerando-se a inflação “média” sobre a folha total) a dezembro de 2017, a inflação medida pelo IPCA foi de 331,11%, enquanto a despesa com pessoal experimentou crescimento total de 777%, ou seja, mais do que o dobro da inflação do período.
Fonte: CONLEG/SF - Gilberto Guerzoni Filho, STN e BACEN. Elaboração nossa
Descontada a inflação, ou seja, em valores corrigidos para dezembro de 2017 pelo IPCA, verifica-se que a média de crescimento real nos períodos FHC 1 e 2 foi de 2,17%, enquanto que nos períodos LULA 1 e 2 foi de 6,58%, enquanto no período DILMA (considerados os efeitos em 2017), essa média foi de 1,49%.
Mesmo com esse crescimento, o percentual de comprometimento da Receita Corrente Líquida, entre 2003 e 2017, partiu de 31,% em 2003 e atingiu, em 2017, ano em que houve severas perdas de arrecadação, somente 39,1%, ou seja, 11 pontos percentuais abaixo do limite máximo permitido pela LRF:
Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal / Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão
Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Público 249, Jan 2017 e Relatório Resumido da Execução Orçamentária STN/MF, dez. 2017.
Assim, não é possível concluir ou demonstrar que, no período FHC 1 e 2, houve aumento da despesa com pessoal superior, seja em relação ao PIB, seja em termos reais, ao que se verificou nos governos LULA 1 e 2, embora a média do aumento anual da despesa, em valor real, tenha sido ligeiramente superior à verificada durante os anos impactados pelas decisões do governo DILMA.
Da mesma forma, não há que se apontar, nas medidas adotadas para recuperar as perdas remuneratórias acumuladas, ou promover o ingresso, mediante concurso, de novos servidores, intensificada no período 2003-2015, qualquer efeito no sentido de gerar um descontrole de gastos que possa justificar, ou mesmo demandar, medidas de congelamento de vencimentos e subsídios, e o sucateamento do serviço público que decorre do não provimento de cargos vagos, a cada ano, como tem ocorrido historicamente na Administração Pública Federal.
Medidas inteligentes e capazes de promover a profissionalização do serviço público, com o recrutamento para funções estratégicas e exclusivas de Estado, e sua qualificação em escolas de governo, são inadiáveis, assim como garantir que serviços essenciais à população em áreas como saúde, previdência social, educação e segurança pública, e que dependem, sobretudo, do capital humano, são impositivas.
Renovar e modernizar o perfil da força de trabalho requer um trabalho incessante tanto no sentido de rever a estrutura de cargos e carreiras, quanto no sentido de promover o recrutamento em bases meritocráticas (mas não formalistas) de indivíduos aptos a dominarem conteúdos críticos para a gestão pública, mas também a se adaptarem a cenários de mudança acelerada, do ponto de vista da tecnologia e das demandas da sociedade, e providos de um senso de missão e de ética que valorize o compromisso com a prestação de serviços à sociedade – e não, apenas, a investidura em cargos públicos em busca apenas de estabilidade ou salários compensadores.
Nesse contexto, medidas de ajuste fiscal focadas na redução do gasto público com o pessoal ativo e inativo, sob o argumento de que o crescimento dessa despesa é insuportável e desproporcional, invertendo as prioridades governamentais, mostram-se não somente falaciosas, como atentatórias à verdade dos fatos.
(*) Consultor legislativo do Senado Federal
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NOTAS
[1] Cfe. Boletim Estatístico de Pessoal / Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Secretaria de Gestão de Pessoas e Relações do Trabalho no Serviço Público 249, Jan 2017.
[2] Em 31 de agosto de 2018, o Governo Temer editou a MP 849, adiando para 2020, ou cancelando, os reajustes concedidos com efeitos financeiros em 2019. Em vista dessa medida, R$ 7,2 bilhões foram suprimidos da proposta orçamentária nas dotações de pessoal dos órgãos do Executivo e alocados como Encargos Financeiros da União - reserva de contingência, sob a supervisão do Ministério do Planejamento. A mesma medida, porém, não foi adotada em relação ao reajuste dos militares das Forças Armadas.