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Conceito adotado pelo governo contraria definição de decisões da Justiça Trabalhista. Ministra do TST criticou portaria na presença do ministro do Trabalho. 'É retrocesso inadmissível', diz outro ministro.

Pelo menos dois ministros do Tribunal Superior do Trabalho (TST), instância máxima da Justiça trabalhista no país, atacaram a nova portaria do governo que redefine o conceito de trabalho escravo e muda as regras de fiscalização sobre a prática no país.

Atuais integrantes da Corte, Maria Helena Mallmann – juíza do trabalho desde 1981 – e Lelio Bentes Corrêa – que fez carreira no Ministério Público do Trabalho – chamaram a norma de “retrocesso”.

Na última quarta (18), Mallmann criticou a portaria na presença do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, sentado à mesma mesa que ela em um seminário internacional sobre trabalho seguro realizado em Brasília.

“Fomos surpreendidos, ministro, com a portaria 1.129, editada pelo Ministério do Trabalho, cujas medidas, perdoe-me senhor ministro, no meu ponto de vista, consagram um retrocesso na luta contra a erradicação do trabalho escravo no Brasil”, disse, sob aplausos.

O Ministério do Trabalho, porém, afirma que a portaria agilizará a abertura de processo criminal contra quem explora trabalho escravo. Entre os apoiadores da medida, está a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Em entrevista ao G1, Lelio Bentes, especialista em trabalho infantil e escravo e colaborador da Organização Internacional do Trabalho (OIT) desde 2002, também disse que a portaria é “retrocesso inadmissível” por, segundo ele, contrariar a lei brasileira e convenções internacionais.

“A portaria, por definição, como ato administrativo, não pode ir além e muito menos contra a lei. À toda evidencia restringe o conceito previsto no Código Penal e por isso padece de flagrante ilegalidade”, afirmou.

O que diz a portaria, a lei e a Justiça

A portaria 1.129, publicada no último dia 16, mudou a forma de caracterizar o trabalho análogo à escravidão, remetendo a um conceito que era aplicado antes de 2003.

Naquele ano, o Código Penal passou a definir trabalho escravo como aquele que submete o empregado a trabalho forçado ou a jornada exaustiva, a condições degradantes, além daquele que restringe sua locomoção. Assim, pelo entendimento da Justiça, a verificação de qualquer dessas situações caracteriza o trabalho escravo.

“Para a configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima 'a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva' ou 'a condições degradantes de trabalho', condutas alternativas previstas no tipo penal”, diz uma decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto.

A nova regra do governo não muda a definição do Código Penal, mas traz uma nova orientação aos fiscais do trabalho no momento de verificar, em visita pessoal, os locais onde há suspeitas de trabalho escravo.

A portaria entende por trabalho análogo à escravidão somente aquelas situações que afetam a liberdade de ir e vir do empregado ou àquelas nas quais sofre coação, na qual trabalha sob ameaça de punição. Assim, para o governo, o trabalho forçado, a jornada exaustiva e as condições degradantes deixam de caracterizar escravidão.

A Justiça Trabalhista já usa esses critérios para definir o trabalho escravo desde a mudança do Código Penal em 2003.

Uma decisão recente do TST, de maio deste ano, deixa clara a ampliação do conceito. A ideia principal é de que o trabalho escravo contemporâneo não é só aquele que afeta a liberdade do empregado, mas também sua dignidade.

“A chamada escravidão contemporânea adquire facetas múltiplas, que envolvem a violação de direitos fundamentais como a liberdade e a dignidade do indivíduo, devendo ser entendida à luz da alteração promovida no dispositivo legal, que espelha duas vertentes do trabalho em condições análogas à da escravidão: o trabalho forçado e o trabalho degradante. Assim, não só à luz da restrição à liberdade de locomoção do trabalhador devem ser analisados os casos de alegação de redução do trabalhador à condição análoga à de escravo”, diz a decisão, relatada pelo Aloysio Corrêa da Veiga.

Fiscalização

A nova regra do governo não interfere diretamente nas definição que os juízes adotam para condenar o trabalho escravo, mas pode comprometer a produção de provas nos locais onde ele ocorre.

Lelio Bentes explica que é nas visitas promovidas pelo Ministério do Trabalho que os técnicos descrevem e fotografam o local para verificar se as condições são degradantes ou se há trabalho forçado. O material serve de base para o Ministério Público denunciar a prática junto à Justiça criminal ou trabalhista.

“A fiscalização tem o primeiro contato com essa realidade. O que auditores fiscais fazem é registrar, por exemplo, que o trabalhador morava num barraco de lona preta, comia comida estragada, bebia água junto com animais etc. E o Ministério Público, a partir daí, constata o trabalho escravo e denuncia o caso à Justiça”, explica o ministro.

À Justiça Trabalhista, cabe cobrar indenizações dos empregadores, seja para reparar danos morais individuais (no qual o próprio trabalhador recebe) ou coletivos (no qual a comunidade recebe o recurso para obras sociais). À Justiça Federal, cabe condenar os empregadores pelo crime, cuja pena varia de 2 a 8 anos de prisão.

Para Bentes, a mudança no entendimento do governo atende a interesses econômicos. Ele diz que a pressão para mudar a definição cresceu depois de 2014, quando uma emenda à Constituição permitiu à Justiça expropriar terras onde é encontrado trabalho escravo e destiná-las à reforma agrária, sem qualquer pagamento ao dono.

Fonte: Extra