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Governo de Milei abranda proposta e agora sugere que países do grupo negociem acordos comerciais livremente, sem mencionar especificamente livre-comércio

Argentina apresentou nova proposta em reunião do Mercosul em Buenos Aires, nesta terça-feira (11), para que o bloco se flexibilize e permita acordos comerciais bilaterais com outros países. O foco são os Estados Unidos.

A proposta já era aventada de forma reiterada pelo governo de Javier Milei, crítico do bloco, desde o início da gestão e se coloca em um momento adverso para Buenos Aires no Mercosul, com uma tríade de governos mais críticos à flexibilização (o Brasil de Lula, o Paraguai de Santiago Peña e o Uruguai do recém-empossado Yamandú Orsi).

O texto proposto nesta terça é mais brando do que versões anteriores circuladas por Buenos Aires. Se antes Milei se referia explicitamente à permissão para celebração de tratados de livre-comércio de forma bilateral, agora o projeto foi para uma flexibilização para "acordos de preferências comerciais", algo em tese mais limitado. É uma resposta aos sinais que Buenos Aires recebeu do governo Trump. 

Enquanto o presidente argentino repetia em eventos públicos e no próprio Mercosul seu interesse de fechar um acordo de livre-comércio com os EUA, de Washington a sinalização era outra.

Há apenas uma semana, o enviado do republicano para a América Latina, Mauricio Claver-Carone, disse à rede CNN que os EUA "não estão buscando novos tratados de livre-comércio". "O que queremos são tratados justos e equitativos", afirmou ele. 

Ainda assim, interlocutores brasileiros disseram à reportagem que a expressão usada pelos argentinos é ampla e não está claro se os acordos referidos poderiam incluir ou não tratados de livre-comércio.

Minutos antes da reunião, o secretário de Relações Econômicas argentino, Luis María Kreckler, ex-cônsul em São Paulo, disse à Folha e ao jornal La Nación que o tema não estaria em jogo. "Cada país mostrará suas cartas, e vamos ver o que sai", afirmou.

A Argentina apresentou modelos diferentes para flexibilizar o bloco. Documento circulado em dezembro passado e acessado pela reportagem propunha explicitamente que, se em ao menos duas reuniões do GMC (Grupo Mercado Comum), o Executivo do Mercosul, não houvesse consenso em fechar um novo acordo de livre-comércio com um país terceiro, as nações poderiam negociar de forma bilateral.

É uma proposta que, para um interlocutor brasileiro envolvido no debate, implode um princípio básico do Mercosul desde a sua criação, o do consenso. As decisões do bloco, incluindo qualquer acordo com países terceiros que envolva novas tarifas, são tomadas dessa maneira.

O Protocolo de Ouro Preto, que complementou o Tratado de Assunção, fundador do Mercosul, e deu as bases institucionais do bloco, diz que "as decisões nos órgãos do Mercosul serão tomadas por consenso e com a presença de todos os Estados-parte". 

Ainda para diplomatas brasileiros, há uma erosão do projeto de união aduaneira (que, entre outras coisas, supõe políticas comerciais externas alinhadas entre os membros do bloco) e de caminhar rumo a um projeto de mercado comum que são os pilares norteadores do Mercosul.

O dilema é que justamente o consenso, o pilar agora em jogo, está distante das ações argentinas. Outros países do bloco, em especial Brasil e Paraguai, não apoiam a flexibilização nos moldes argentinos.

Durante os anos de Luis Lacalle Pou, da centro-direita, na Presidência do Uruguai, o país pleiteou a mesma flexibilização que agora Milei almeja. No caso de Montevidéu, a ideia era forjar um acordo bilateral com a China. Mas os ventos mudaram no Uruguai com a posse do esquerdista Yamandú Orsi, próximo a Lula.

Interlocutores uruguaios dizem que, a princípio, não podem recusar de pronto a nova proposta dos argentinos. A expectativa do Itamaraty, porém, é que o uruguaio recue da ideia de negociar individualmente e se alinhe à posição encabeçada pelo Brasil, de apenas fazer tratativas em bloco.

Se insistir na proposta, a única alternativa argentina seria abandonar o Mercosul. É algo que Milei já ventilou, mas que parceiros do bloco veem como uma decisão de altíssimo custo político, em especial agora que o bloco finalizou o acordo de livre-comércio com a União Europeia. 

Se saísse do bloco, Milei perderia todos esses arranjos comerciais e teria que tentar negociar bilateralmente o que já existe no Mercosul, como acordos com vizinhos como o Chile.

Não está claro qual caminho o presidente teria de seguir. Ou seja, se a decisão poderia partir do Executivo ou se teria de passar pelo Legislativo, onde, hoje, a Casa Rosada não tem maioria. Neste segundo cenário, tudo seria ainda mais complicado.

Mas Milei tem recorrido a decretos para aprovar medidas controversas, mesmo diante de acusações de opositores de que promove um atropelo às instituições da democracia. Ele já recorreu à caneta presidencial para indicar um novo juiz ao Supremo, mesmo sem aval do Senado, como manda a Constituição, e também já autorizou por decreto um novo acordo com o FMI, quando a Carta Magna exige que o Congresso dê luz verde para qualquer empréstimo no exterior.

Uma alternativa seria esperar até as eleições legislativas de outubro, quando se renova 1/3 da Câmara e do Senado com expectativa de que o Liberdade Avança de Milei ganhe mais cadeiras. O custo de escândalos como o criptogate (o caso de golpe que envolve a criptomoeda $Libra divulgada pelo presidente) ainda é incerto, e até aqui as pesquisas apontam que o partido governista é o favorito para o pleito.

A Argentina está até a metade deste ano na presidência rotativa do Mercosul. Na sequência, o Brasil assumirá o posto. Desde que Milei assumiu o governo, o país tem dificultado debates no bloco, como os que falam sobre igualdade de gênero e direitos humanos. Buenos Aires deixou, por exemplo, de financiar o instituto de direitos humanos do Mercosul, ironicamente sediado nesta capital. 

Estando na presidência, o país tem maior controle do que será abordado nas reuniões do grupo, de modo que já era esperado que a flexibilização fosse um assunto-chave. O Brasil tem a expectativa de, ao assumir o controle no próximo semestre, tirar peso do tema e retomar a agenda social do bloco fundado em 1991.

FONTE: FOLHA DE S.PAULO