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A pandemia da Covid-19 piorou dramaticamente as condições de um mercado de trabalho que já carregava os efeitos da recessão e do baixo crescimento.
Virginia Rolla Donoso e Carlos Henrique Horn
Nos primeiros quatorze anos deste século, a economia brasileira vivenciou um processo de crescimento contínuo do emprego. Em média, o nível geral da ocupação aumentou 1,8% a.a. entre 2001 e 2014, quando se atingiu o auge dessa expansão no terceiro trimestre. E mesmo quando o país foi atingido pela crise iniciada no mercado subprime norte-americano no fim de primeira década, o impacto sobre o mercado de trabalho foi menos intenso e mais breve do que se observou nas economias desenvolvidas. A contraface da persistente expansão no nível geral do emprego foi a queda na taxa de desocupação. Em 2014, a taxa de desocupação estimada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE[1] havia diminuído para 6,8% da força de trabalho, tendo chegado a um piso de 6,5% no quarto trimestre do ano.
O crescimento do emprego e a relativa baixa taxa de desemprego – associados à alta gradual no salário mínimo, aos resultados favoráveis nas negociações coletivas de salário, à formalização dos trabalhadores, ao aumento nas taxas de escolarização etc. – configuravam um ambiente francamente mais positivo para os trabalhadores. Houve, à época, quem interpretasse a maior atividade no mercado de trabalho como um processo mais amplo de mudança na sociedade, de significativa expansão da classe média, quando o que se verificava era uma melhora nas condições de vida de assalariados e de trabalhadores em outras formas de ocupação, com ampliação de oportunidades e elevação da renda.
Este processo, no entanto, foi interrompido com o início da recessão econômica no segundo trimestre de 2014 e, sobretudo, com seu agravamento nos anos de 2015 e 2016. A redução anterior no desemprego era entendida por alguns analistas como um dos fatores explicativos da alta na inflação. O então economista-chefe do Itaú Unibanco, por exemplo, assim escreveu, sem meio-termo, em 2013:
[…] o combate à inflação requer estar disposto a abrir mão de coisas valiosas. A sociedade está preparada para (temporariamente) reduzir o consumo e desaquecer o mercado de trabalho para reduzir a inflação? … O mercado de trabalho aquecido tem gerado aumentos de salários que, repassados aos preços, têm gerado resistência à queda da inflação. (Ilan Goldfajn, Combater a inflação, mexer no emprego).
Esta e tantas outras observações semelhantes, que dirigem o foco de suas preocupações aos menores níveis de desemprego, fazem lembrar o ensaio seminal de Michal Kalecki, Os aspectos políticos do pleno emprego, em que o economista polonês enumera os motivos pelos quais os empregadores resistem a aceitar baixos níveis de desemprego. Uma taxa de desocupação que reflita apenas o que os economistas denominam desemprego friccional tem o dom de arrefecer o poder disciplinador do mercado de trabalho. Um resultado da redução do desemprego pode ser a diminuição da desigualdade distributiva, com melhora na participação das rendas do trabalho. A resistência à redistribuição da renda surge por meio da inflação provocada por quem procura defender suas margens de lucro, ou da mudança recessiva na orientação da política econômica que induza ao aumento no desemprego, ou de outras ações regressivas nos campos da economia e da política.
Nos primeiros meses de 2015, após a troca nos condutores da política econômica nacional, a medicação recessiva foi aplicada em doses fartas, o que logo se fez sentir no mercado de trabalho. Entre dezembro de 2014 e março de 2017, o país perdeu 3,8 milhões de postos de trabalho. Esta contração de 4,1% no número de pessoas ocupadas foi acompanhada por um salto na taxa de desocupação, que mais do que duplicou no mesmo período – passando de 6,5% para 13,7% da força de trabalho. Neste cenário, o número de desempregados, de pessoas que procuravam ativamente trabalho e renda para sobreviver, chegou a 14,1 milhões de pessoas.
Desde então, o mercado de trabalho brasileiro não recuperou as condições mais favoráveis aos trabalhadores que haviam vigorado nos primeiros quatorze anos deste século. Uma lenta recuperação da atividade econômica levou a que apenas em outubro de 2018 o nível de emprego voltasse a atingir o patamar anteriormente observado em dezembro de 2014. Em 2019, o número de pessoas ocupadas era tão somente 1,9% maior do que o estimado para o ano de 2014. Quanto à taxa de desemprego, que chegara ao ápice em março de 2017, recuou também lentamente até atingir 11% da força de trabalho no fim de 2019. Naquele momento, havia 11,6 milhões de pessoas em busca de emprego e renda no Brasil, um número 81,5% maior do que o registrado em dezembro de 2014.
A pandemia da Covid-19 piorou dramaticamente as condições de um mercado de trabalho que já carregava os efeitos da recessão e do baixo crescimento. O impacto da crise sanitária, contudo, foi muito mais intenso do que o da recessão de 2015-16. A Figura 1 mostra a conhecida trajetória do nível da ocupação e do tamanho da força de trabalho no ano de 2020, sendo possível contrastá-la com o que ocorreu no biênio recessivo. Afora a marcante diferença de intensidade na queda do nível de ocupação, outra diferença básica entre os dois períodos é que, no ano da pandemia, a redução no nível de emprego se desdobrou, sobretudo, em uma saída massiva de pessoas da força de trabalho, o que não se constatou durante a recessão anterior, quando a rápida piora na ocupação resultou em um aumento substancial no desemprego sem redução do tamanho do mercado de trabalho.
Figura 1: Evolução da ocupação e da força de trabalho, Brasil, 2014-2020 (mil pessoas)
Duas severas crises em tão curto intervalo temporal transformaram o perfil da inserção da população brasileira na atividade produtiva, sendo o efeito da pandemia da Covid-19 especialmente devastador em termos de destruição de empregos, empresas e meios de subsistência e da multiplicação do número de pessoas em condição de pobreza. Para evidenciar a drástica mudança no perfil da inserção produtiva da população, apresentamos a Figura 2, elaborada com base em estimativas da PNAD Contínua. A Figura mostra o percentual de pessoas em três grandes grupos populacionais em relação ao total da população com 14 anos ou mais de idade – chamada de população em idade de trabalhar – nos anos de 2014 e 2020. Os grupos populacionais são os seguintes: (i) pessoas ocupadas e que julgavam trabalhar um número suficiente de horas; (ii) pessoas em condição de subutilização da sua força de trabalho, ou seja, que manifestam vontade e/ou necessidade de trabalhar ou de trabalhar mais horas; e (iii) pessoas inativas para o mercado de trabalho, ou seja, que não trabalham, nem manifestam vontade presente de trabalhar.
Figura 2: Perfil da população em idade de trabalhar, 2014/2020 (%)
A grande mudança ocorrida no perfil da inserção da população em idade de trabalhar foi a queda acentuada na participação das pessoas ocupadas com horas suficientes e sua contrapartida direta no aumento da participação das pessoas em condição de subutilização da força de trabalho. Em 2014, para cada pessoa em condição de subutilização, havia 5,7 pessoas ocupadas, auferindo rendimentos e que consideravam trabalhar um número suficiente de horas. Em 2020, essa relação despencou para 2,6 pessoas. Quanto às pessoas classificadas como inativas perante o mercado de trabalho, pois não trabalham, nem estão à procura de ocupação ou manifestam vontade de trabalhar, o percentual se manteve no mesmo patamar, de 36,4% da população com 14 anos e mais de idade.
A trajetória de expansão do número de pessoas que precisam trabalhar e se encontram em condições de subutilização foi cumulativa entre 2014 e 2020. Neste período, o aumento no número de pessoas nesta categoria foi colossal, passando de 15 milhões em dezembro de 2014 para 32 milhões em dezembro de 2020. A Figura 3 apresenta a evolução da taxa de subutilização da força de trabalho no Brasil, onde fica clara a tendência ascendente a partir de 2015. Em janeiro daquele ano, o contingente de pessoas com sua capacidade de trabalho subutilizada era de 15% da força de trabalho ampliada, o que praticamente duplicou até atingir 28,7% no fim de 2020. Em setembro deste ano, o indicador atingiu um pico de 30,6% no contexto da crise sanitária, ou seja, três em cada dez pessoas na força de trabalho (ampliada) necessitando trabalhar ou trabalhar mais horas a fim de prover a sobrevivência de sua família.
Figura 3: Evolução da taxa de subutilização da força de trabalho, Brasil, 2014-2020 (%)
Os indicadores sobre a subutilização da força de trabalho fornecem uma visão mais detalhada sobre as condições do mercado de trabalho do que o indicador singular da taxa de desemprego. Há três categorias de subutilização nas estatísticas da PNAD Contínua, a saber: (i) as pessoas desocupadas, ou seja, que não têm trabalho e procuram ativamente por um trabalho; (ii) as pessoas ocupadas, mas que julgam trabalhar um número insuficiente de horas e buscam ampliar sua carga de trabalho e rendimentos; e (iii) a assim-chamada força de trabalho potencial. Este último grupo é tradicionalmente apresentado como uma parcela da população em idade ativa que se encontra fora do mercado de trabalho. Nele, o IBGE considera duas situações: (i) pessoas que recentemente teriam realizado busca efetiva por trabalho, mas não se encontram disponíveis para trabalhar quando foram entrevistados, e (ii) pessoas que não teriam realizado essa busca, mas declaram que gostariam e estariam disponíveis para trabalhar. Conquanto sejam classificadas como parte da população fora da força de trabalho (efetiva), essas pessoas são passíveis de mais rápida mobilização num contexto de recuperação do mercado de trabalho. Donde a expressão força de trabalho potencial.
A força de trabalho potencial cresceu rapidamente em virtude dos desdobramentos da crise sanitária no Brasil, quando houve massiva saída de pessoas do mercado de trabalho por perda de ocupação e desistência de procurar novo trabalho. Atingiu 11,5 milhões de pessoas no ano de 2020, um contingente pouco inferior ao dos desempregados, que chegaram a 13,4 milhões de pessoas na média do ano. Portanto, somados os desocupados e a força de trabalho potencial, havia 24,9 milhões de brasileiros e brasileiras que, em graus diversos, careciam de trabalho e renda no ano passado. Ao incluir também os subocupados por insuficiência de horas, o resultado é um nível notavelmente elevado de 31,2 milhões de pessoas que padeciam de subutilização da sua força de trabalho.
A piora geral das condições de vida dos trabalhadores brasileiros desde 2014 pode ser evidenciada no aumento do número de pessoas na condição de subutilização. A Figura 4 mostra o crescimento no número de pessoas em cada categoria – desocupados, subocupados com insuficiência de horas e força de trabalho potencial. Mostra, ainda, o crescimento de um subgrupo da força de trabalho potencial, o dos desalentados. São pessoas que, segundo a PNAD Contínua, não procuraram trabalho nos trinta dias de referência da pesquisa, mas estariam disponíveis para trabalhar. Os motivos para terem deixado de buscar uma ocupação são variados: insucesso na obtenção de trabalho após longa procura, falta experiência, ser considerado muito jovem ou idoso, não encontrar trabalho na localidade em que tem moradia. Em qualquer caso, demonstram disponibilidade para assumir um posto de trabalho. Com o efeito cumulativo da piora na economia brasileira desde 2014, o número de desalentados passou de 1,5 milhão para 5,2 milhões de pessoas no intervalo de seis anos.
Figura 4: Número de pessoas nos grupamentos da subutilização da força de trabalho, Brasil, 2014/2020 (mil pessoas)
O economista institucionalista norte-americano John Rogers Commons, um dos fundadores do campo de investigação sobre as relações de trabalho (industrial relations) nos Estados Unidos no início do século XX, contemplava quatro métodos de melhora das condições dos trabalhadores: políticas macroeconômicas de incentivo ao emprego; legislação protetiva do trabalho; negociação coletiva de trabalho e a administração de recursos humanos das empresas. Destes, considerava como mais efetivo a política econômica que lograsse reduzir a taxa de desemprego. Ela funcionaria como o mais relevante elemento singular, aquele capaz de alargar – ou de contrair, no caso de aumento da taxa de desemprego – as possibilidades de sucesso dos demais métodos.
O ambiente de 2021 é dramático para as condições dos trabalhadores brasileiros. A precarização do mercado de trabalho evidenciada nos indicadores de subutilização é tamanha que não há método capaz de lhe fazer oposição. Neste ambiente, a legislação se tornou menos efetiva – ainda mais diante do ataque sistemático de que é alvo desde o golpe de 2016 –, os sindicatos perderam poder de barganha e as empresas, mesmo aquelas que procuram praticar uma política progressista de recursos humanos, se veem tentadas ou forçadas a rebaixar custos pelo caminho regressivo da contenção salarial. É provável que, no período de boom pós-pandemia – que, no momento, carece de perspectiva clara no caso do Brasil –, ocorra uma melhora natural nas condições do mercado de trabalho. A questão que importa é saber se o país conseguirá dar continuidade a este sopro de recuperação, enfrentando os enormes desafios para inserir as pessoas que estão à margem de um trabalho que lhes assegure sobrevivência justa e digna. Não haverá tarefa mais importante no tempo imediato. Este enfrentamento, todavia, exigirá uma nova política econômica. E uma real política de desenvolvimento da nação.
Notas
[1] Este artigo e tantas outras análises do mercado de trabalho brasileiro muito devem à atividade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a principal instituição brasileira de produção de estatísticas socioeconômicas e de enorme variedade de dados que nos permitem melhor conhecer o país. Em 29 de maio de 2021, o IBGE completa 85 anos de existência num contexto pouco favorável aos que labutam em prol da ciência. Registramos nossos agradecimentos aos que perseveram em manter acesa a chama do rigor científico em todas as áreas do IBGE.
Virginia Rolla Donoso é economista e trabalha no site Democracia e Mundo do Trabalho. É mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Carlos Henrique Horn é economista e professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutor em Industrial Relations pela London School of Economics and Political Science.
Fontes: Democracia e Direitos Fundamentais/DMT