Entra em vigor nesta terça-feira (21) a nova Lei de Migração, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, legislação oriunda do regime militar que abordava a migração do ponto de vista da segurança nacional. Embora a nova lei seja considerada progressista, entidades de direitos humanos advertem que o decreto de regulamentação, que deve ser publicado também nesta terça-feira, desvirtua a lei.
Diversos artigos do decreto de regulamentação são alvo de crítica da Defensoria Pública da União (DPU) e de organizações de defesa dos direitos dos migrantes.
"O decreto tem aspectos claramente contrários à própria Lei de Migração, como a previsão de prisão do migrante que será deportado, quando o artigo 123 da lei expressamente proíbe privação de liberdade por razões migratórias", diz Camila Asano, coordenadora de Programas da Conectas Direitos Humanos.
"A lei é um grande avanço e o decreto, com hierarquia inferior, não pode deturpá-la. O governo Temer não pode desconsiderar a construção do texto da lei, que se deu com ampla participação social por anos."
A DPU encaminhou um documento pedindo 47 modificações. Uma das mudanças pedidas se refere à regulamentação da reunião familiar de solicitantes de asilo político –pelo decreto, os familiares precisam estar em território nacional. Na maioria das vezes, no entanto, solicitantes de asilo político chegam ao país sozinhos, em fuga.
"Esperamos que o decreto a ser publicado acolha parte de nossas sugestões", diz Gustavo Zortea da Silva, defensor público da União.
VISTO HUMANITÁRIO
O decreto adia a regulamentação dos vistos e autorizações de residência por motivos humanitários, que eram grandes inovações da Lei de Migração. No artigo 36, o texto determina que um "ato conjunto dos Ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e Segurança Pública e do Trabalho definirá as condições, prazos e requisitos para emissão do visto."
"Quando o decreto remete para atos complementares interministeriais, isso pode atravancar a lei, não é simples reunir vários ministérios e chegar a um consenso –e essas são questões urgentes, veja por exemplo o caso dos venezuelanos", diz Silva.
Até hoje, apenas haitianos e pessoas afetadas pela guerra da Síria foram beneficiadas por vistos humanitários. A nova lei abria caminho para sistematizar a concessão desse tipo de visto.
Em março, uma resolução do Conselho Nacional de Imigração ampliou o acordo de residência do Mercosul a cidadãos de países fronteiriços não pertencentes ao bloco, o que inclui os venezuelanos. O acordo permite residência temporária por até dois anos.
Mas muitos dos mais de 30 mil venezuelanos que entraram no Brasil desde o início da crise no país vizinho não se candidataram à autorização de residência, por causa da exigência de apresentação de documentos em que conste sua filiação.
Segundo Asano, a filiação não consta no documento venezuelano de identidade, e muitos venezuelanos têm medo de ir até o consulado para pedir uma declaração consular. Por isso, eles entram com pedido de refúgio, que não exige documentação –mas a decisão pode levar anos e não há garantia de concessão.
Segundo as entidades, esse é um dos motivos da urgência de regulamentação de vistos e residência por motivos humanitários –elas esperam que um ato seja publicado também nesta terça-feira.
Para Asano, da Conectas, também é problemático o artigo que estabelece modalidades de trabalho para a concessão de visto, algo que não constava da legislação original. "O Estatuto do Estrangeiro era discriminatório, estabelecia quem seria bem vindo no Brasil, e o decreto faz a mesma coisa", diz.
Procurado, o Ministério da Justiça não quis responder às perguntas da reportagem e enviou uma nota.
"O texto do decreto se encontra na Casa Civil e aguarda assinatura do presidente da República para publicação no 'Diário Oficial da União'. O Ministério da Justiça e Segurança Pública irá se manifestar e tirar todas as dúvidas da imprensa após ter conhecimento da redação final."
As entidades criticam também o que consideram falta de transparência na elaboração do decreto. Segundo o padre Paolo Parise, coordenador da Missão Paz, entidade que acolhe refugiados, o prazo da consulta pública do decreto foi exíguo e a data da audiência pública foi comunicada em cima da hora. "Diferente da Lei de Migração, que teve ampla participação da sociedade civil", diz.
FONTE: FOLHA DE S.PAULO