Nos anos em que delações premiadas e denúncias de corrupção cometida por altos empresários sacudiram o Brasil, funcionários de grandes empresas se tornaram mais dispostos a relatar irregularidades para seus empregadores. Dados da consultoria de compliance ICTS Outsourcing, responsável por mais de 200 canais de denúncias de companhias no país, apontam um aumento de mais de 50% no volume de denúncias recebidas entre 2014 e 2017. Além de apostar mais em canais externos terceirizados, com maior garantia de anonimato para quem relata o caso, o tempo de resposta das empresas também diminuiu.
A pesquisa focou em 50 companhias que possuem canal há mais de cinco anos. O assunto que mais gera denúncias ainda está ligado a relacionamentos interpessoais – desde desvios de comportamento a abusos de poder e assédio -, presentes em 43% das denúncias em 2017. Em seguida vêm os relatos de má conduta, como fraudes e outros tipos de irregularidades, com 34%. Descumprimentos de normas completam a lista com cerca de um quarto das denúncias.
Para o sócio-diretor da ICTS, Cassiano Machado, a percepção de denúncia sofreu uma “mudança radical” desde a Operação Lava-Jato. Quando a consultoria começou a oferecer o serviço para empresas brasileiras, em 2007, o nome da ferramenta era “canal confidencial”, para que não carregasse um tom “pejorativo”. “Hoje, o denunciante é visto como alguém que quer contribuir para o ambiente de trabalho”, diz.
Desde 2013, com a aprovação da Lei Anticorrupção, ele vê um movimento mais forte de transformar canais internos, nos quais quem recebe as denúncias são funcionários da empresa, em externos, nos quais uma consultoria faz um trabalho de recebimento e apuração inicial dos relatos. Isso costuma aumentar o volume de denúncias em cerca de 60%, na sua experiência.
O distanciamento é um ponto importante para assegurar o anonimato e transmitir confiança aos denunciantes – cerca de 70% das denúncias são feitas anonimamente. Os maiores alvos são os gestores das empresas, sejam chefes diretos ou altos executivos, e 86% das denúncias são feitas por funcionários. As demais vêm de públicos externos, como fornecedores.
Após ser avaliada pela consultoria, a denúncia é enviada para as áreas de auditoria das empresas. No caso de queixas contra a alta cúpula, entidades como o conselho e comitês de compliance são acionadas. Segundo a pesquisa, o tempo de resposta das empresas – período entre o recebimento da denúncia até a apuração e retorno ao denunciante – diminuiu em mais de 40% nos últimos três anos, atingindo em 2017 a média de 36 dias.
Na Localiza, o canal de denúncias externo foi implementado em 2012 – anteriormente, a empresa de aluguel de carros contava apenas com um e-mail de contato. O gerente de auditoria interna e compliance Fabricio de Oliveira, no entanto, diz que ainda assim houve receio de retaliação entre os funcionários quando o canal começou. Por isso, uma política específica para o assunto foi desenvolvida e divulgada em 2016. Hoje, o canal é aberto para os empregados, fornecedores e público externo, tem serviço em português, espanhol e inglês, e é divulgado na comunicação interna e em ordens de serviço para fornecedores.
O que mais motiva os funcionários da Localiza – responsáveis pela maioria das denúncias – são descumprimentos de políticas internas e assédio moral. A apuração inclui desde consulta a e-mails e imagens de câmeras de segurança a entrevistas com testemunhas e áudios gravados pelos denunciantes. Oliveira diz que já houve demissões decorrentes de relatos recebidos pelo canal.
Em 2017, a Localiza, que tem cerca de 7.700 funcionários, apurou aproximadamente 360 denúncias. Oliveira percebeu um aumento nos últimos dois anos, que ele atribui a uma “cultura de ética” mais forte na população como um todo. Não é raro denunciantes citarem “tudo isso que está acontecendo no Brasil” e um desejo de evitar que o mesmo aconteça na companhia que os emprega.
Na Odebrecht Óleo e Gás (OOG), que recentemente anunciou a mudança de nome para Ocyan, a implementação de um canal de denúncias externo faz parte da estratégia de reforço do programa de compliance e de reabilitação da imagem do grupo como um todo após a Operação Lava-Jato. Em março do ano passado, a OOG foi a primeira companhia do grupo a inaugurar um canal “100% independente”, explica o diretor de compliance Nir Lander.
Em oito meses, foram cerca de 70 denúncias, ou quase 10 por mês, para 3.200 funcionários. “O canal é importante porque ajuda a identificar e endereçar fragilidades do ambiente de controle”, diz Lander. Outra medida foi selecionar 22 funcionários de diversas áreas e sem cargo de liderança para serem “agentes de ética”. Eles foram treinados pela equipe de compliance para transmitir regras e dar sugestões de aprimoramento à área.
No Magazine Luiza, o canal de denúncias corporativo recebeu uma adição na metade do ano passado. A empresa lançou um “canal da mulher”, dedicado a receber denúncias de violência contra funcionárias, após a morte de uma gerente de loja, assassinada pelo marido, chocar a empresa. A psicóloga Gislaine Sandim, especialista da área de integridade da rede de varejo, recebe os relatos, que são analisados por um comitê que conta com Luiza Helena Trajano e uma promotora de Justiça.
Após uma primeira fase de acolhimento e, quando necessário, apoio financeiro para a mulher se afastar do risco, Gislaine encaminha os casos para serviços públicos como a delegacia da mulher e o Ministério Público, orientando as funcionárias até o fim do processo. Em cerca de cinco meses, o canal, que é divulgado internamente na comunicação da empresa, recebeu mais de 60 casos. Gislaine diz que o Magazine Luiza está sendo consultado por outras companhias interessadas na experiência. “Estamos nos estruturando para ajudar outras empresas porque percebemos que é um tema muito urgente”, diz.
Machado, da ICTS, percebe um leve aumento no número de denúncias relacionadas a assédio sexual, e espera que isso siga um movimento similar ao da Lava-Jato agora que o assunto ganhou mais atenção devido a revelações envolvendo grandes nomes de Hollywood. Recentemente, inúmeras brasileiras relataram casos de preconceito e assédio vividos no ambiente de trabalho no Twitter, por meio da hashtag #MulheresNoTrabalho.
Casos de assédio moral ou sexual, discriminação e agressão representam cerca de 25% das denúncias recebidas, mas ainda são considerados mais difíceis de apurar, diz Machado. “Muitas vezes é uma situação silenciosa que não deixa evidência, e a reação de quem é assediado é de vergonha e de não expor”, diz. A apuração dessas denúncias costuma incluir, por exemplo, pesquisas de clima relacionadas ao gestor em questão, histórico do profissional, indícios registrados na comunicação corporativa ou até mesmo gravações feitas pelo denunciante.
Em todos os tipos de denúncia, a decisão de atuar nas informações é sempre da empresa. Cerca de metade das denúncias são investigadas mas não são confirmadas, seja porque o denunciante tinha uma visão incompleta do ocorrido ou por elas serem consideradas inconclusivas.
O advogado trabalhista Júlio Mendes, do escritório Mascaro Nascimento, reforça que, caso uma denúncia não seja respondida de forma satisfatória pela empresa, o funcionário pode levar o caso ao Ministério do Trabalho ou ao Ministério Público do Trabalho, no caso de situações coletivas. A denúncia feita no canal pode, inclusive, entrar como prova em uma ação judicial. Para isso, é importante que o funcionário siga as orientações dos manuais de conduta e códigos de ética da companhia. “Se a apuração não foi para a frente ou não recebeu a devida cautela dada a gravidade da situação, isso pode ser visto como uma falha da empresa”, diz.
Fonte: Valor Econômico