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Muralha da China, no dia 28 de março: reaberta parcialmente ao público depois de dois meses fechada por causa do coronavírus (/Getty Images)

Metas visam autossuficiência tecnológica, controle da poluição, gastos com pesquisa e educação

Os principais líderes da China vão mapear as políticas para o desenvolvimento econômico e social do país nos próximos cinco anos em reunião nesta semana. A nova estratégia de "dupla circulação" do líder chinês Xi Jinping deve guiar a retomada pós-pandemia.

A "dupla ciruclação", termo que empregou pela primeira vez em maio, significa que a China deve confiar em um ciclo de demanda e inovação interna como principal propulsor da economia, e manter os mercados e investidores externos como um segundo propulsor de crescimento.

As propostas para o Plano Quinquenal, que cobrirá de 2021 a 2025, serão discutidas na quinta sessão plenária do 19º Comitê Central do Partido Comunista.

Este será o 14º Plano Quinquenal da China desde 1953. Membros do governo, assessores, acadêmicos e legisladores passam meses debatendo o conteúdo antes que os planos sejam finalizados e publicados, e então precisam receber a aprovação final do Congresso Nacional do Povo, em sua reunião anual, que costuma se realizar em março.

Os planos de modo geral cobrem quase todas as questões econômicas e sociais e estabelecem metas que vão desde o crescimento econômico anual e as taxas de urbanização até o controle da poluição, a educação e gastos com pesquisa e desenvolvimento.

 

Confira alguns temas chaves do plano.

CIRCULAÇÃO DUPLA, REFORMA DO MERCADO DE FATORES, GOVERNANÇA

Espere ouvir muito mais sobre alguns termos relativamente novos, especialmente "circulação dupla", reforma do mercado de fatores e governança, junto com outros mais antigos, como reforma estrutural pelo lado da oferta, que surgiu pela primeira vez no final de 2015.

Muito mais do que modismo, porém, essas são estratégias e políticas bem pensadas para orientar o desenvolvimento econômico da China por meio de uma mudança estrutural fundamental, passando da velocidade em direção a qualidade e sustentabilidade. A circulação dupla e a reforma do mercado de fatores surgiram no início deste ano e vão proporcionar uma ampla estrutura para que os ministérios, autoridades e assessores do governo elaborem e implementem políticas mais detalhadas e específicas que ajudarão a economia a crescer de forma sustentável.

Xi Jinping revelou a estratégia de "dupla circulação" em uma reunião do Politburo em maio. Embora nenhum detalhe tenha sido divulgado, o palno consiste em tornar a economia mais dependente da "circulação interna" —o ciclo doméstico de produção, distribuição e consumo— para o seu desenvolvimento, ao mesmo tempo que é apoiada pela "circulação externa", que se relaciona com o comércio e investimento internacionais e as ligações da China com o resto do mundo.

A reforma dos mercados para fatores de produção —terra, trabalho, capital, tecnologia e dados— é necessária porque o sistema atual está distorcendo o preço, a alocação de recursos e impedindo o crescimento do que é conhecido como produtividade total dos fatores, medida chave da produtividade de uma economia, de acordo com Wang Yiming, ex-vice-diretor do Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento, um centro de estudos do Conselho de Estado.

SEM MAIS METAS DE CRESCIMENTO DO PIB

O 14º Plano Quinquenal é especialmente importante para o próximo estágio do desenvolvimento econômico e social da China, já que 2020 marca o fim da meta do país de alcançar uma "sociedade moderadamente próspera em todos os aspectos". Esse é um conceito tradicional que remonta aos tempos de Confúcio para descrever uma sociedade com uma classe média funcional.

Ele foi adaptado e atualizado ao longo dos anos e apresentado no 18º Congresso do Partido Comunista em novembro de 2012: dobrar tanto o Produto Interno Bruto (PIB) e quanto a renda per capita de 2010 a 2020, e erradicar a pobreza. As metas foram definidas para serem alcançadas pouco antes do 100º aniversário da fundação do partido, em 2021.

Com a linha de chegada à vista, o governo agora se concentra na formulação de estratégias para fazer frente aos novos desafios e objetivos. Os legisladores sabem que a economia enfrenta muitos ventos contrários. Na frente externa, isso inclui a atual pandemia de Covid-19, o agravamento das relações com os Estados Unidos e a perspectiva de desacoplamento entre tecnologia e cadeia de suprimentos. Na frente doméstica, eles incluem limpar o meio ambiente, melhorar a estrutura industrial da China, mudar para um modelo de crescimento impulsionado pelo consumo, aumentar a renda e reduzir a disparidade de riqueza e lidar com o declínio da força de trabalho e o envelhecimento da população.

É amplamente esperado que o novo plano menospreze a expansão do PIB como meta principal e se concentre na qualidade do crescimento, no reconhecimento de que a economia está passando por uma desaceleração estrutural e que a velocidade não é mais o principal fator de desenvolvimento econômico.

A taxa média anual de crescimento do PIB da China diminuiu de 9,8% no período de 2001 a 2005, logo após o país ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC), para uma média de 6,7% nos primeiros quatro anos do plano atual, que termina neste ano. Os economistas esperam de modo geral que ao longo de 2021-2025, o período do 14º plano, o ritmo caia ainda mais, para uma faixa de 5% a 5,5%.

As metas de PIB nos planos cederam ao inevitável —a meta média anual no último plano foi definida em "pelo menos 6,5%", abaixo dos 7% do 12º plano, que vigorou de 2011 a 2015. Tem havido um debate considerável sobre qual deveria ser uma meta de taxa apropriada para o próximo plano e se a meta de crescimento do PIB superou seu objetivo e deve ser eliminada por completo.

A preeminência da meta do PIB, que historicamente os formuladores de políticas consideravam necessária para garantir o pleno emprego, fez com que os governos locais se concentrassem em impulsionar o investimento, a forma mais fácil de alcançar o crescimento em curto prazo.

Com base na experiência anterior, o foco contínuo no ritmo de crescimento, especialmente se a meta for muito alta, levará os governos locais a se empenharem para alcançá-la ou superá-la. Isso poderia levar a políticas de estímulo desnecessárias que terão efeitos colaterais que incluem um aumento adicional de dívida e alavancagem, capacidade excedente e bolhas de ativos, escreveu em um artigo em maio Xu Lin, ex-diretor do departamento de planejamento de desenvolvimento da Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma.

Wang Tao, chefe de economia da Ásia e economista-chefe da China no UBS Investment Bank, espera que o crescimento do PIB da China atinja uma média de apenas 5% nos próximos cinco anos, pressionado por uma série de fatores, incluindo mudanças nas cadeias de suprimentos globais alimentadas por políticas mais duras dos EUA sobre o uso de tecnologia chinesa e a crescente resistência à globalização. Na frente doméstica, a China será desafiada pelo envelhecimento demográfico, elevada alavancagem macro, gargalos de tecnologia e baixa eficiência em algumas áreas da economia.

Wang disse esperar que o governo não estabeleça uma meta de crescimento explícita ou apresente uma faixa menor e mais flexível de aproximadamente 5%.

Li Chao, economista-chefe da Zheshang Securities Co. Ltd., disse que o governo deveria descartar totalmente a meta e dar mais ênfase à qualidade e estrutura do crescimento econômico. Ele propôs metas alternativas, como a proporção da produção de valor agregado de indústrias emergentes estratégicas como porcentagem do PIB, a taxa de urbanização, o financiamento direto como porcentagem do financiamento social total ou a capitalização de mercado do mercado de ações da China como porcentagem do PIB. As metas serviriam como indicadores para permitir que o governo acompanhe o desempenho dos principais fatores do lado da oferta, incluindo a produtividade do trabalho e do capital, disse Li.

MAIS FOCO NO CONSUMO

Por muitos anos, a China enfatizou a importância de aumentar a demanda doméstica, especialmente após a crise financeira global de 2008-2009. Mas o foco foi colocado em infraestrutura e investimento em propriedade, com muito menos apoio ao consumo das famílias, que é uma questão mais complexa e de longo prazo para enfrentar.

Mas agora muitos governos locais reclamaram que estão ficando sem bons projetos de infraestrutura para realizar, está se tornando mais difícil encontrar financiamento e o governo central impôs controles mais rígidos sobre os veículos de financiamento dos governos locais.

As preocupações com as bolhas de preços no mercado imobiliário levaram a uma campanha para controlar o setor que já dura mais de três anos e não dá sinais de relaxamento. Como resultado, o aumento do consumo doméstico, especialmente o consumo privado —bens e serviços comprados e consumidos pelas famílias— precisa estar na vanguarda da estratégia de dupla circulação, dizem os economistas.

O consumo privado como proporção do PIB ainda está muito aquém dos países desenvolvidos, embora isso dê à China muito espaço para melhorar. Os dados mais recentes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que, na China, o gasto das famílias como porcentagem do PIB é de 38,5%, em comparação com uma média de 60% nas economias da OCDE, 64,5% no Brasil e 67,9% nos Estados Unidos.

A recuperação envolverá uma série de políticas que incluem tributação e o sistema fiscal para reduzir a lacuna entre ricos e pobres, redistribuir a renda das empresas para os consumidores privados, aumentar a renda familiar e dar às famílias uma parcela maior da renda nacional.

O governo chinês já está dando passos nesse caminho —em outubro de 2018, por exemplo, anunciou uma reforma do sistema de imposto de renda de pessoa física que corta o peso sobre quase 60% dos contribuintes, segundo Gan Li, professor do Instituto de Pesquisa de Economia e Gestão da Universidade Southwestern de Finanças e Economia.

Mas os economistas geralmente concordam que muito mais precisa ser feito e que o 14º Plano Quinquenal poderia incluir novas reformas, políticas e medidas para ajudar a impulsionar o consumo das famílias. Li Shi, professor na Universidade de Zhejiang, disse que o governo deve acelerar a reforma do sistema de distribuição de renda, melhorar ainda mais o sistema de seguridade social e aumentar os pagamentos do governo aos pobres.

Uma forma de gerar demanda, principalmente de serviços, é expandir a classe média, hoje estimada em cerca de 400 milhões de pessoas. O governo deve ter como objetivo dobrar o tamanho desse grupo para 800 milhões a 900 milhões, ou cerca de 60% da população total da China, nos próximos 10 a 15 anos, de acordo com Liu Shijin, vice-presidente da Fundação de Pesquisa e Desenvolvimento da China, um grupo de pensadores patrocinado pelo governo.

PRIORIZAR A AUTOSSUFICIÊNCIA TECNOLÓGICA E A INOVAÇÃO

A China implementou durante anos várias estratégias para promover a ascensão do país na cadeia de valor industrial e reforçar sua posição em setores de alta tecnologia e outros emergentes, principalmente por meio da iniciativa Made in China 2025 e da campanha de inovação e empreendedorismo em massa.

Mas a iniciativa adquiriu urgência adicional à medida que as tensões com os Estados Unidos se aprofundaram e a ameaça de um desacoplamento tecnológico aumenta conforme os Estados Unidos impõem mais restrições à venda de componentes de alta tecnologia para empresas chinesas.

O presidente Xi enfatizou continuamente a necessidade de autossuficiência em tecnologias chaves e, em um simpósio em agosto para solicitar contribuições de economistas e acadêmicos para o novo plano, ele disse que tecnologia e inovação podem fomentar novos motores de crescimento e são fundamentais para construir "circulação interna". Seus comentários confirmam as expectativas de que a China redobrará seus esforços para reduzir a dependência da tecnologia dos EUA e de outras economias, e muitos analistas esperam que o 14º Plano Quinquenal coloque ainda mais ênfase no financiamento para pesquisa.

Na última década, os gastos com pesquisa e desenvolvimento (P&D) como porcentagem do PIB em países desenvolvidos como os EUA, Coreia do Sul e Japão têm sido duas a quatro vezes maiores do que na China, segundo Li, o economista da Zheshang Securities. Embora os gastos com P&D em relação ao PIB tenham sido uma meta em todos os planos chineses desde o 10º, que cobriu 2001-2005, o país nunca atingiu o valor estabelecido pelo governo, como mostram os dados oficiais. Em 2019, o gasto da China com P&D em relação ao PIB foi de 2,2%, abaixo da meta de 2,5% para 2020.

Wang, do UBS, disse esperar que o 14º plano aumente a meta de gastos com P&D para cerca de 3% em 2025. Isso apoiaria os gastos com pesquisa básica e tecnologias de ponta em áreas como semicondutores, software, maquinário de precisão e tecnologia robótica avançada, bem como para fortalecer a proteção dos direitos de propriedade intelectual, disse ela.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

FONTE: FOLHA DE S.PAULO