Em levantamento do pesquisador Marcel Balassiano, apenas a Venezuela terá um resultado pior que o Brasil entre sul-americanos - Getty Images

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Tempo mostrou que deter vírus ou crescer era falso dilema; medidas sanitárias embasam retomada

A eclosão da pandemia do coronavírus nos primeiros meses de 2020 levou especialistas a traçar dois prognósticos sombrios: o mundo viveria uma catástrofe humanitária e um colapso econômico. Ambas as expectativas se confirmaram.

Desde o início da crise, mais de 2,5 milhões de mortes foram registradas até sexta-feira (26), segundo a Universidade Johns Hopkins.

A projeção mais recente do Banco Mundial indica uma queda de 4,3% no PIB (Produto Interno Bruto) global no ano passado. O resultado só não é pior do que os computados durante as duas guerras mundiais e a Grande Depressão, entre 1930 e 1932.

 

Por trás desse cenário negativo, no entanto, há nuances tanto nos números da saúde quanto da atividade produtiva.

Noruega, Coreia do Sul e China, que têm taxas de morte pelo coronavírus por 100 mil habitantes de, respectivamente, 11,4; 3,1 e 0,4, registraram crescimento de suas produções industriais de 7,3%, 0,3% e 2,8% em 2020, segundo dados da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).

Bélgica, Itália e Brasil, com taxas de mortalidade pela Covid-19 de, respectivamente, 192,2; 182,8 e 118,7, computaram contrações de 3,6%, 8,4% e 4,4% no mesmo indicador.

 

Haverá por trás desses poucos exemplos o que cientistas chamam de causalidade, sendo o bom resultado econômico em um ano de colapso mundial resultado da habilidade dos países de conter a pandemia?

Ainda é cedo para responder a essa pergunta por uma série de motivos, como a própria duração —mais longa do que o esperado— da pandemia e a falta de indicadores econômicos mais completos. Muitos países, como o Brasil, ainda nem divulgaram o PIB de 2020.

Mas especialistas dizem que evidências anedóticas indicam que pode existir uma relação causal entre os dois fatos.

A revista britânica The Economist publicou em janeiro reportagem sobre o crescimento de 2,3% do PIB chinês em 2020. Embora esse tenha sido o pior desempenho do país desde 1976, o número positivo, definitivamente, não era esperado por analistas no início da crise e deverá ser um dos poucos crescimentos registrados no mundo em 2020.

Como ressalta a The Economist, a indústria chinesa se beneficiou de consequências da pandemia em si, como a disparada na demanda global por máscaras e telas.

Mas é difícil não atribuir pelo menos parte do desempenho à menor incerteza associada à contenção do contágio, graças a ações rápidas tomadas pelo governo chinês, como duras políticas de distanciamento social e um planejamento rigoroso de como ele seria gradualmente flexibilizado.

Especialistas também têm notado a diferença de desempenho entre a economia alemã e a de outros europeus.

Embora esteja longe das menores taxas de mortalidade pelo coronavírus, a Alemanha tampouco se aproxima dos piores casos. Com 83 mortes por 100 mil habitantes, o indicador da nação é inferior à metade dos 192,2 óbitos por 100 mil pessoas na Bélgica.

A produção industrial da Alemanha despencou 9,9% em 2020. Além disso, o PIB do país (maior economia europeia) recuou 5%. Mas, segundo estimativas oficiais, a contração alemã deverá ser a metade da amargada por França e Itália, que têm taxas de mortalidade pela Covid-19 bem mais elevadas.

Em entrevista recente à Folha, o economista Branko Milanovic, um dos maiores especialistas do mundo em desigualdade de renda, ressaltou que ainda faltam explicações para a enorme diferença entre as taxas de mortalidade pela Covid-19 ao redor do mundo.

“Se você olha a taxa de morte por milhão de pessoas, não estamos falando de diferenças que são 1 para 2 ou 1 para três, mas 1 para 200. Então, há muita explicação necessária”, diz ele.

Na avaliação de Milanovic, os países que foram capazes de convencer suas populações a seguir o distanciamento social nos inícios dos ciclos de piora da epidemia e combinaram essa política com medidas como ampla testagem e mapeamento dos contatos dos infectados são os que têm preservado mais vidas.

E evidências crescentes indicam que, embora tenham custos elevados, essas medidas não condenam as economias a um colapso e que seu efeito pode ser até um desempenho relativo melhor em relação a nações com dificuldade em conter a disseminação do vírus, como o Brasil.

Um temor bastante disseminado no início da pandemia era que políticas rigorosas de distanciamento destruiriam a atividade produtiva. Naquele momento, um grupo de pesquisadores publicou estudo que indicava que esse medo era infundado.

Ao fazer uma comparação rigorosa das diferentes reações de políticas públicas à disseminação da gripe espanhola em 1918, os economistas mostraram que as localidades que reagiram mais prontamente tiveram uma retomada econômica mais vigorosa.

Um trabalho recém-publicado com foco no Brasil buscou investigar a mesma questão, mas usou a atual pandemia como estudo de caso.

As variáveis econômicas analisadas foram a evolução do saldo de vagas formais e arrecadação de ICMS, entre março e junho de 2020, para 104 municípios de São Paulo.

Para medir o nível de distanciamento social, os autores construíram um índice baseado em dados da Fundação Seade de localização dos usuários de telefones celulares.

A pesquisa —fruto de parceria da Unicamp com a Universidade do Texas— concluiu que distanciamento social mais rígido não piora o desempenho dos municípios.

“É possível que o resultado generalizado pior da economia tenha sido provocado pela pandemia em si, mas não foi pelo distanciamento social”, diz o economista Luiz Gustavo Sereno, da Unicamp.

Sereno teve como coautores no estudo —financiado por CNPq e Ministério da Saúde— os pesquisadores Alexandre Gori Maia, também da Unicamp, Letícia Marteleto, da Universidade do Texas, e Cristina Guimarães, da Fipe/USP. O grupo trabalha agora na ampliação da análise para 3.500 municípios do país.

Segundo Sereno, a ideia é avaliar se o isolamento garante melhor desempenho.

“A tendência é que, a longo prazo, o distanciamento contribua para um melhor desempenho da economia, mas ainda não temos confirmação disso.”

Outro achado relevante dos pesquisadores foi que cada ponto percentual de aumento no distanciamento social teria salvado 215 vidas nos municípios analisados.

Para garantir que estavam capturando de fato o impacto do distanciamento sobre contágios e mortes, os autores usaram mudanças nas condições climáticas como instrumento que os permitiu isolar os efeitos de reduções espontâneas na mobilidade.

Outros estudos internacionais têm usado esse mecanismo e chegado a conclusões parecidas. Ou seja, que o isolamento social, de fato, causa a redução do contágio e da mortalidade pelo coronavírus.

Mas a pesquisa com foco em São Paulo indica que os efeitos positivos em uma localidade diminuem se cidades vizinhas adotam medidas menos rigorosas de distanciamento. Por isso, os autores concluem que a falta de coordenação de políticas no Brasil tem imposto “limitações críticas” no combate à Covid-19.

O estudo também separou o efeito do distanciamento segundo o nível sócio econômico da localidade analisada. Os resultados indicam que, quanto menor o patamar de renda da população, mais vidas são salvas pelo isolamento social.

O trabalho ressalta que pessoas que vivem em localidades mais pobres têm dificuldades consideráveis na implementação do distanciamento.

Outro estudo recente indica que essas dificuldades têm se traduzido em mais óbitos em áreas com concentração populacional alta e desordenada.

Com base em dados de telefones celulares no Rio de Janeiro, os pesquisadores Luiz Brotherhood, Tiago Cavalcanti, Daniel Da Mata e Cezar Santos mostram que o distanciamento social, nas favelas, tem sido muito menor.

Seu modelo indica que, embora os habitantes das favelas somem 22% da população, eles representam 30% das mortes pelo coronavírus.

“Muitos estudos têm mostrado que essa crise agrava as diversas desigualdades já existentes nos países”, diz Santos, que é professor da FGV/EPGE e pesquisador do banco central de Portugal.

A questão, ressalta, é como lidar com a dificuldade de moradores de áreas mais pobres em fazer distanciamento social. “Eles dependem muito mais de trabalhos com interação social, que não podem ser feitos de forma remota.”

No início da pandemia, muitos especialistas construíram modelos de previsão que esperavam que o pior cenário —em termos de mortalidade— seria o de baixíssimo isolamento social. Mas, em contrapartida, segundo essas projeções, a imunidade de rebanho seria alcançada rapidamente nesses contextos, abrindo o caminho para a recuperação da economia.

“Isso se mostrou um equívoco. A realidade tem mostrado que a imunidade de rebanho é retardada por fatores como o distanciamento espontâneo de grupos que podem reduzir sua mobilidade”, diz Santos.

Nesse contexto, sem medidas adicionais eficazes para a contenção da pandemia, tanto a crise sanitária quanto a econômica tendem a se prolongar.

 

FONTE: FOLHA DE S.PAULO