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O mea-culpa do movimento sindical brasileiro passa por uma autocrítica, uma reflexão profunda de seu papel nesses novos tempos, corrigindo rotas e fixando objetivos claros, consistentes e duradouros que possam ser assimilados por aqueles que são sua razão de ser: os trabalhadores.

Cesar Augusto de Mello*

A organização sindical brasileira, representada por dirigentes de sindicatos, federações, confederações e centrais sindicais, ainda está perplexa diante das profundas e variadas alterações promovidas pela Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, tanto no âmbito do direito individual, quanto no direito coletivo do trabalho. Estamos falando da popularmente denominada “reforma trabalhista” já aprovada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal e sancionada pelo Presidente da República – Lei 13.467/2017 – a qual sobreveio a MP 808/2017 (e centenas de emendas), que acabou por não ser votada e perdeu sua eficácia. Fazendo uma analogia com a construção civil temos um imóvel inicialmente projetado e construído (Lei 13.467/2017), que antes de ser utilizado por seus pretensos moradores sofreu um imperioso reparo (MP 808/2017). Com esse reparo inicial verificou-se que outros reparos seriam ainda mais necessários (emendas à MP 808/2017), entretanto acabaram não sendo realizados. Resultado: a obra original está evidentemente comprometida e o tempo vai mostrar sua absoluta inabitabilidade.

Muitos dirigentes sindicais, ainda grogues pelo golpe certeiro, respiram fundo se segurando nas cordas do ringue para tentar evitar o nocaute. O fato é que por longos anos, uma parte das lideranças sindicais representantes dos trabalhadores e também dos empregadores viveram numa zona de conforto, onde arrecadavam livremente sem qualquer questionamento dos que pagavam a conta. É certo que o Ministério Público do Trabalho (MPT) tentou interferir na arrecadação sindical, promovendo ações anulatórias e propondo termos de ajustamento de conduta, dentre outros procedimentos, mas diante do número exagerado e crescente de entidades sindicais em descompasso com o reduzido número de Procuradores o resultado acabou não sendo satisfatório, destacando-se que o MPT, nas suas ações optou por não separar o joio do trigo, causando sérios embaraços a várias entidades sindicais que vinham desenvolvendo um bom e legítimo trabalho frente a seus representados. É preciso também que não ecoemos erro corrente de não separar o joio do trigo, conforme narra a passagem Bíblica (Mateus 13:24-30), e ressaltemos o trabalho incansável de milhares de entidades sindicais espalhadas por todo território nacional, que combatem o bom combate de forma irrepreensível.

Mas o fato é que não deveria haver motivo para a perplexidade, pois desde a Constituição Federal de 1988 que boa parte do movimento sindical brasileiro discute autonomia sindical, defendendo o pluralismo e a contribuição facultativa, entretanto, com a promulgação da Carta Maior de 1988, o art. 8º, IV autorizou a implantação da contribuição confederativa sem acabar com a contribuição sindical legal prevista no art. 578 e seguintes da CLT, aí teve início o gradual e natural afastamento de alguns dirigentes sindicais de seus representados, uns ainda até eram vistos nas assembleias esvaziadas, onde muitas vezes de forma pífia ocorriam discussões sobre as questões laborais. Para muitos, a tranquilidade e inventividade arrecadatória cominaram numa renúncia expressa ao debate de assuntos básicos de interesse da classe.

O advento dos governos Lula e Dilma, poderia ter levado o movimento sindical a escantear suas divergências e materializar suas vontades no que se refere ao sistema de organização, representação sindical e custeio, etc, mas não o fizeram. Numa tarefa hercúlea, em 2004, tentaram uma ampla reforma sindical, mas ao que parece, apesar da vasta discussão e participação de vários segmentos, poucos acreditaram que depois de acabada pudesse se consolidar em forma de lei, e o projeto enviado ao Congresso em março de 2005 não avançou.

Portarias do Ministério do Trabalho burocratizaram a criação de entidades sindicais, entretanto, a criatividade sindical fez brotar dezenas delas sem a mínima vocação negocial, algumas dotadas de incansável fúria arrecadatória. Após a entrada em vigor da Lei das Centrais – Lei 11.648, de 31 de março de 2008 – essas entidades de cúpula passaram a receber parte do bolo da contribuição sindical profissional (10%), houve uma reestruturação intercategorial em sentido macro da classe trabalhadora, que doravante teria interlocutoras para abordar assuntos gerais e de seu interesse, junto ao Estado. As Centrais tiveram assento nos Conselhos, negociaram mecanismo de reajuste do salário-mínimo, pressionaram para que houvesse reajuste da tabela de correção do Imposto de Renda, participaram de reuniões para tratar de problemas setoriais, etc, etc, etc. Essa articulação fez com que o trabalhador da base estivesse amplamente tutelado pelas entidades de cúpula quanto ao seu papel de coordenação frente aos seus filiados, por outro lado, houve um crescente afastamento de parte das lideranças sindicais das suas bases, enfraquecendo ainda mais o já tênue liame.

Diante da crise econômica e um governo tampão, ao que parece comprometido com reformas radicais e urgentes dissociadas dos interesses da classe trabalhadora, alteraram densamente a estrutura sindical e trabalhista, causando aversão generalizada no meio. Não há dúvidas que transformações seriam necessárias diante do novo contexto mundial que envolve a globalização e a automação crescente, entretanto, sem o necessário debate de tema tão importante só poderia dar no que deu. Aprovada a toque de caixa a reforma acabou por descompensar as relações coletivas de trabalho e precarizar contratos.

Na organização sindical brasileira impera a unicidade, há um monopólio de representação (só pode existir um único sindicato por categoria na base territorial, que não pode ser inferior ao município). O ideal do pluralismo (possibilidade de mais de um sindicato da mesma categoria na base territorial) somente seria possível se alterássemos a Constituição Federal e essa não é uma tarefa fácil de ser perpetrada. Só o Brasil, dentre os membros da ONU, resiste ao pluralismo sindical. Mas num país com dimensões territoriais de continente o sistema confederativo de organização sindical tem sua razão de ser, pois ele impede a pulverização irrestrita da representação e permite a organização via unicidade de segmentos profissionais, com sindicatos na base, federações na parte intermediária e confederações no ápice da pirâmide sindical, cada qual com sua competência funcional e representativa, todos sob a coordenação macro das Centrais Sindicais. O aperfeiçoamento deste sistema poderia se dar por meio da autorregulação, que seria esteada por regras materializadas com a participação direta dos próprios destinatários, abordando questões eleitorais, mandato sindical, representação e outros temas relacionados.

Com a reforma, o nosso modelo de organização sindical sofreu um sério desequilíbrio, porque a real possibilidade da inexistência de sequer uma única contribuição compulsória do trabalhador ao Sindicato e ao mesmo tempo a sua obrigatoriedade de negociação coletiva representando toda a categoria, conforme prevê o art. 8º, II, da CF, provoca um desconcerto manifesto. Os tribunais, com sua jurisprudência sedimentada acabam por onerar aqueles que pagam a mensalidade associativa – Precedente Normativo 119 do TST e Súmula Vinculante 40, do STF – e isentam os não associados, criando uma classe de privilegiados pela norma coletiva que estão desobrigados de custear minimamente a estrutura que o representa na luta por melhores condições de trabalho via negociação coletiva. E mais, o fim da ultratividade (validade da norma coletiva de trabalho até que outra venha a substituí-la) e a necessidade do chamado comum acordo (concordância da parte contrária) para o ajuizamento de dissídios coletivos junto aos Tribunais Trabalhistas, acabam por incentivar negociações anêmicas, com resultados abaixo do esperado pela classe operária diante da necessidade de sobrevivência que pode vir a pressionar algumas entidades sindicais.

A autorreflexão se faz necessária, o “reposicionar-se” é um imperativo existencial e o pragmatismo nunca foi tão exaltado como agora na administração sindical. Não importa em que conjuntura, a partir da reforma nada será como antes e há necessidade premente de se rever conceitos, se aproximar ainda mais da base de representação, se utilizar dos velhos e novos mecanismos de comunicação para convencê-la da real necessidade de se organizarem em sindicatos diante do atual contexto econômico global.

Inspirados na Fênix da mitologia grega e sob a nova plataforma legal que se apresenta, tem início um novo combate diuturno na defesa da liberdade sindical, coibindo de forma incisiva e dura as práticas antissindicais e movimentos objetivando apequenar a organização sindical brasileira e seu grande papel histórico e contemporâneo.

O mea-culpa do movimento sindical brasileiro passa por uma autocrítica, uma reflexão profunda de seu papel nesses novos tempos, corrigindo rotas e fixando objetivos claros, consistentes e duradouros que possam ser assimilados por aqueles que são sua razão de ser: os trabalhadores.

DIAP

(*) Advogado trabalhista, presidente da Comissão de Direito Sindical da OAB-SP e assessor jurídico de entidades sindicais.