Em janeiro de 2021, o presidente Jair Bolsonaro instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial – GTI para atualizar a Política Marítima Nacional – PMN, que teve sua última revisão em 1994. Segundo a Marinha do Brasil, que coordena os trabalhos, essa reformulação busca dar ao país melhores condições de explorar o vasto potencial de seus mares e hidrovias para atender os interesses nacionais. Confiamos que a Marinha do Brasil tenha, de fato, intenção de coordenar um bom trabalho, como tradicionalmente faz ao tratar das questões marítimas relevantes para o Brasil, mas sabemos que a última palavra na definição de políticas não caberá a ela.
Após diversas reuniões do GTI – que conta apenas com integrantes do governo – uma parcela da comunidade marítima foi convidada a comparecer a um evento de apenas um dia, a fim de compor oficinas para discutir os objetivos e diretrizes da PMN. O convite chegou com pouquíssima antecedência, deixando a impressão de que alguns membros representativos da comunidade marítima quase ficaram de fora, o que, de fato, ocorreu com outra parcela que sequer foi convidada.
O tempo exíguo e a falta de divulgação para a sociedade da pauta do GTI obviamente não permitiram um envolvimento efetivo dos poucos representantes da Marinha Mercante que estavam presentes. A Conttmaf compareceu ao evento e procurou oferecer a visão dos marítimos nacionais dentro da limitada dinâmica estabelecida para reformulação da Política Marítima Nacional. De imediato, saltou-nos aos olhos o fato de que o emprego de trabalhadores marítimos brasileiros e o estímulo ao registro de embarcações no Brasil não foram incluídos nos dez objetivos marítimos definidos pelo GTI.
São pontos básicos que precisam ser garantidos para que o Brasil mantenha a soberania no transporte marítimo e alcance vantagem estratégica e competitiva, contemplando os legítimos interesses nacionais tanto no âmbito doméstico – a cabotagem, quanto no comércio exterior – o longo curso. A falta de menção a esses dois temas acarreta uma arriscada fragilidade no poder marítimo de uma nação com as características do Brasil e não encontra similaridade em outros países que têm marinha mercante.
Além desses, há outros pontos que merecem mais atenção de quem pretenda formular uma política nacional para o setor. Embora seja grande produtor mundial de commodities agrícolas, minerais e de petróleo – cargas que não são exportadas a não ser por navios – o Brasil se tornou um Estado dependente de outras bandeiras no transporte marítimo internacional. No longo curso, já não há navios de carga registrados no Brasil participando regularmente do comércio marítimo internacional, à exceção da pequena frota de dez navios Suezmax da Transpetro, que a gestão de sua controladora, a Petrobras, se esforça em vender para empresas estrangeiras antes que este ano acabe. Essa decisão aumentará ainda mais o expressivo desembolso da estatal com afretamento em outras bandeiras e selará a total dependência externa do Brasil no transporte marítimo internacional.
Nossa marinha de comércio precisa ser estimulada no cenário mundial. De outro modo, ao que tudo indica, em breve os brasileiros sentirão também no setor de petróleo o sabor amargo que a indústria e o agronegócio nacionais já experimentam ao arcar com os elevados fretes cobrados no mercado internacional, especialmente no transporte de contêineres.
No transporte doméstico de mercadorias, embora haja navios registrados em nossa bandeira, o Brasil também corre o risco de ficar perigosamente subordinado aos interesses do oligopólio de megatransportadoras que controla navios e terminais de contêineres em âmbito mundial. Mau sinal que o presidente Bolsonaro tenha vetado a participação de pelo menos 2/3 de marítimos nacionais nos navios estrangeiros que serão autorizados a operar com fartos incentivos na cabotagem brasileira, por meio do programa BR do Mar, criando um perigoso precedente para desnacionalização do trabalho em maior escala no mar, em terra e no ar.
Fato é que o Brasil não terá capacidade de transporte efetiva sem navios mercantes registrados no país e tripulados por brasileiros. Ao mesmo tempo, a nação não pode prescindir de sua marinha de Estado, estruturada de modo a inibir possíveis ameaças externas aos interesses marítimos e comerciais nacionais. Diante desse quadro preocupante para o futuro do Brasil, a Conttmaf apresentou suas contribuições à oficina que tratou da Garantia da Soberania no Mar e Defesa da Amazônia Azul.
Nossa Confederação manifestou o entendimento de que, para garantir a soberania nacional, é imprescindível contarmos com brasileiros capacitados a atuar na atividade marítima, com estímulo ao ingresso e à permanência de homens e mulheres nas carreiras do mar. É isso que possibilitará ao Brasil ter o domínio das inovações tecnológicas incorporadas ao transporte marítimo, além da expertise para efetivo controle das operações a bordo das embarcações. E, em terra, para desenvolvimento das atividades de apoio técnico e gestão das empresas marítimas.
A proposta da Conttmaf é incluir nos objetivos estabelecidos pelo governo para a PMN um que contemple o elemento humano nacional como diferencial competitivo e fator estratégico para o país nas atividades relacionadas à Marinha Mercante, em especial, aquelas desempenhadas a bordo dos navios.
Adicionalmente, propusemos a inclusão de uma diretriz no objetivo que trata da Garantia da Soberania no Mar e Defesa da Amazônia Azul, que tampouco havia sido identificada pelo grupo governamental: “Estimular continuamente o desenvolvimento da Marinha Mercante e a capacitação de brasileiros em suas atividades marítimas, de forma compatível com os interesses da soberania nacional.”
Os marítimos brasileiros têm um longo histórico de serviços prestados ao desenvolvimento do Brasil e na defesa dos interesses nacionais. Foram essenciais para manter a segurança alimentar e o abastecimento de combustíveis no Brasil, permitindo que atravessássemos com menor dificuldade diferentes momentos de crise internacional. Nas Guerras Mundiais, os trabalhadores marítimos foram os primeiros brasileiros que caíram alvejados por tiros inimigos que pretendiam interromper o nosso comércio exterior. Acrescente-se que nunca foi necessário convocar tripulantes brasileiros para defender a pátria quando os interesses nacionais estiveram ameaçados por nações beligerantes. Isso porque, sempre que uma guerra é declarada, nosso pessoal já se encontra naturalmente no cenário de conflito.
Os trabalhadores brasileiros – entre os quais nossos marítimos, fluviários e pescadores representados pela Conttmaf – enfrentam o desemprego e o desalento que não cedem. O Brasil não adotou políticas nacionais efetivas para fazer frente aos novos desafios de emprego e incremento na atividade econômica no pós-pandemia. É necessário valorizar o trabalho e criar possibilidades de inclusão de um número significativo de brasileiros no mercado de trabalho formal, com garantia de direitos e salários justos que possibilitem a capacidade de consumo.
Na contramão desse pensamento, o recente programa governamental BR do Mar, ainda não regulamentado, é um enorme equívoco que necessitará de correções. Isso porque, além de não assegurar a contratação de trabalhadores brasileiros em nossas águas, ele irá promover o emprego em países de baixo custo, um retrato fiel da insensibilidade de quem governa o Brasil para com o seu próprio povo, nitidamente estimulada pelas megatransportadoras que dominam o cenário marítimo mundial.
Passado quase um ano e meio da criação do grupo de trabalho do governo, a redação pretendida para a Política Marítima Nacional permanece um mistério para a comunidade marítima. Não há participação efetiva da sociedade organizada representativa da Marinha Mercante na discussão do que normalmente costuma ser tratado como política nacional e submetido a amplo debate nos países democráticos que têm relevância no comércio internacional.
A falta de transparência nessa discussão, com a exclusão das partes interessadas, gera dúvidas e sérias preocupações. Já há quem diga que o melhor seria estimular deputados e senadores a, após o período eleitoral, chamarem essa discussão para o Congresso, onde, em tese, haveria chances de um debate mais amplo e com possibilidades maiores de representação da sociedade. Ainda não estamos certos disso.
Em algumas semanas, os brasileiros e as brasileiras terão escolhas importantes a fazer nas eleições que se aproximam. Uma preocupação óbvia para todo trabalhador, sem dúvida alguma, deverá ser eleger parlamentares e governantes que demonstrem respeito à instituição do trabalho e aos direitos arduamente conquistados pelos trabalhadores brasileiros ao longo de décadas.
Entre eles, está o de trabalhar em seu próprio país recebendo salários e benefícios justos, com a carteira assinada e os consequentes direitos trabalhistas e previdenciários garantidos, numa situação em que possa planejar o seu futuro e o de sua família com dignidade, em vez de apenas continuar trabalhando para tentar assegurar o pão do dia seguinte, como vem fazendo a maior parte dos brasileiros, em meio a grandes dificuldades.
A existência da Marinha Mercante é uma decisão essencialmente política e defendemos que o Brasil tenha uma Política Marítima Nacional que possibilite à nossa nação ocupar o seu espaço no mundo, sem perder a capacidade de realizar seu comércio marítimo com meios próprios e livre de dependência externa.
Carlos Augusto Müller
Presidente do Sindmar e da Conttmaf