Reduzir salários causa impactos negativos diretos sobre a economia, uma vez que reduz o poder de compra das pessoas, impactando negativamente na própria arrecadação tributária do governo e nas expectativas das empresas
A cegueira das elites empresariais brasileiras: reduzir salários não é a solução
por Lauro Mattei
A crise econômica atual é bem mais profunda que alguns empresários e políticos imaginam e terá uma duração bem mais prolongada do que três a quatro meses, como vem sendo afirmado pela área econômica do governo atual. A virose até poderá ser combatida neste período, mas é praticamente certo que haverá uma forte desaceleração da economia mundial e que seu tempo de recuperação será gradual e dependerá, fundamentalmente, das políticas que cada país irá adotar. O mais provável hoje é que a parada na economia global no primeiro trimestre do ano colocará o mundo econômico em um processo recessivo de maior envergadura comparativamente à crise financeira de 2008, além de que sua duração ainda é uma incógnita.
Para fazer frente a esse cenário extremamente adverso, governos de vários países estão adotando medidas anticíclicas de grande monta, especialmente do ponto de vista da ampliação do gasto público. Como exemplo, agrega-se aos casos já citados em artigos anteriores (França, Inglaterra e EUA) o exemplo da Espanha, cujo governo anunciou no dia 17.03.20 medidas de cunho fiscal e creditício da ordem de 200 bilhões de Euros. Registre-se que em nenhum caso mencionado está se falando de antecipação de gastos orçamentários, ou seja, são recursos novos que estarão sendo aportados à economia para buscar reverter o ciclo recessivo. Nesta direção, em 20.03.20 a Comissão Europeia suspendeu as regras impostas aos orçamentos dos países membros para que os mesmos possam injetar maiores quantidades de recursos na economia, via expansão do gasto público, visando combater os efeitos negativos decorrentes do COVID-19.
No Brasil esse cenário é bem diferente. Por um lado, o governo vem anunciando medidas a conta gotas que são incapazes de apoiar e reativar setores essenciais da economia, conforme explicamos em dois artigos publicados recentemente no site Carta Maior. No caso específico do governo brasileiro, chegou-se ao desplante de pretender forçar a aprovação das medidas de restrição de gastos em debate no Congresso Nacional como estratégia para combater a pandemia do COVID-19, uma vez que o ministro “Fake Economics” tem horror quando se fala em expandir gasto público.
Pelo lado empresarial, observam-se diversas manifestações extremamente danosas para o conjunto da sociedade. Neste artigo vamos nos ater apenas a duas delas. A primeira diz respeito à pauta da Confederação Nacional da Indústria (CNI) enviada ao Governo Federal, a qual serviu de base para algumas das medidas anunciadas pela equipe econômica no dia 19.03.2020. O que chama atenção neste documento é o oportunismo do setor empresarial industrial que, diante do cenário caótica derivado da crise provocada pelo novo coronavírus, viu a oportunidade para tentar fazer uma nova minirreforma trabalhista, com algumas propostas que transcendem o bom senso.
Analisando com maior profundidade essas proposições da CNI para cinco áreas (tributária, monetária, financiamento, regulação e “adequação da legislação trabalhista”), percebe-se que estamos diante de um filme que já assistimos, uma vez que o argumento de “defesa do emprego” serve para qualquer tipo de presunção e interesse, ficando claro que as propostas dessa confederação empresarial vêm na direção do lema “menos direitos para se manter os empregos”. Tal documento parte do pressuposto que o uso dos recursos públicos deve ser direcionado para fortalecer o sistema de saúde e aliviar a situação financeira das empresas visando preservar os empregos. Neste sentido, sempre é bom lembrar que se fez recentemente a reforma trabalhista com os mesmos objetivos, ou seja, preservar o emprego, mas o que se viu logo após a aprovação dessa reforma foi um avanço expressivo do desemprego, que permanece com taxas elevadas até os dias atuais. Por isso, escandalosamente está se tentando fazer mais uma minirreforma trabalhista com objetivo muito claro: retirar mais direitos que ainda estejam presentes na CLT. De fato, só faltou requisitar a volta da escravidão, tamanha é a desfaçatez das propostas apresentadas pela CNI e incorporadas pelo governo como se suas fossem.
Registre-se que as últimas medidas econômicas anunciadas pelo governo em 19.03.20 estão integralmente contidas no documento da CNI, as quais dependem de mudanças em diversas leis e na própria CLT. Decorrem daí as afirmações de diversos integrantes da equipe econômica durante o lançamento das medidas: “o governo estimulará uma maior flexibilização nas negociações trabalhistas individuais para reduzir os custos de contratos visando manter o nível de emprego”. Apenas como registre-se, vale lembrar à equipe econômica que mudanças na CLT e outras leis dependem de aprovação do Congresso Nacional.
Uma segunda manifestação, e seguindo a mesma cantilena, veio do jornal O Globo, que em sua edição de 20.03.20 lançou editorial intitulado “Funcionalismo tem de dar a sua contribuição”. Para tanto, e com base nas ideias de uma economista cabeça de planilha entrevistada pela Globo News no dia anterior, passou a defender que os servidores públicos também deveriam dar sua contribuição neste momento, aceitando uma redução da jornada de trabalho e dos salários da ordem de 25%. Na verdade, tal editorial é uma incitação a necessidade de aprovação da PEC/186/2019, também conhecida como PEC Emergencial, vindo na mesma linha do lema neoliberal que contamina a política econômica do país, cujos resultados têm se mostrado desastrosos até o presente momento.
Não satisfeito, tal jornal voltou ao tema na data de 22.03.20 (domingo) com editorial intitulado “STF pode dar ajuda contra a crise”. Para tanto, solicita-se de forma inconstitucional que o STF interceda para aprovar medidas legais para reduzir os salários do setor privado e, por analogia, também do setor público. Argumenta-se que desta forma sobraria mais dinheiro para ser aplicado no combate à epidemia do coronavírus.
Quanto ao argumento da “sobra de dinheiro”, bastaria apenas lembrar ao Grupo Globo e a um outro conjunto de empresários do país que se eles fossem honestos como a grande maioria dos trabalhadores brasileiros, eles pagariam todas as dívidas de impostos e outras tarifas, como, por exemplo, o imposto sobre grandes fortunas previsto na Constituição Federal. Tais pagamentos transcendem atualmente todo o orçamento do Ministério da Saúde e da Assistência Social e ainda poderiam auxiliar na disponibilização de recursos à custo zero para as micro, pequenas e médias empresas, que são de fato aquelas que empregam grande parte dos trabalhadores do país.
Como divulgado recentemente pela FENAFISCO, 206 bilionários detém uma fortuna superior a 16 trilhão de reais, montante que se fosse taxado em 1%, conforme apregoa a Constituição do país, resultaria em recursos suficientes para meses de ações de combate à epidemia, bem como de recursos para serem aplicados na proteção de empregos e salários. Sabidamente os proprietários do Grupo Globo fazem parte dessa casta de bilionários. Portanto, entendemos que um grupo empresarial que não paga suas dívidas com o fisco, e menos ainda não contribui com as taxas sobre sua fortuna, não tem moral alguma para propor à Suprema Corte do país o confisco dos salários dos trabalhadores do setor público. Além de uma atitude inconstitucional, é desonesta e indigna para com o povo brasileiro.
Para se contrapor a essa ladainha da elite empresarial, informamos que conhecimentos elementares de economia evidenciam as debilidades dessas propostas. Reduzir salários causa impactos negativos diretos sobre a economia, uma vez que reduz o poder de compra das pessoas, impactando negativamente na própria arrecadação tributária do governo e nas expectativas das empresas, que irão retrair ainda mais suas atividades produtivas. Já reduzir jornada de trabalho dos servidores públicos neste momento de epidemia impactará negativamente em quatro áreas cruciais de atendimento à população: saúde, assistência social, educação e segurança pública. Registra-se que em todas essas áreas já são notadas faltas de pessoas qualificadas para o exercício profissional.
Portanto, registramos que a prioridade atual dos governos e da sociedade em todo o mundo está sendo, primeiramente, salvar vidas e, na medida do possível, reduzir os efeitos negativos da pandemia sobre as atividades econômicas. E é isso que países estão fazendo ao anunciar medidas que não têm o equilíbrio fiscal como pressuposto, uma vez que sabem a importância do Estado para evitar o colapso social e econômico em épocas de crise. No caso particular em debate, vide o exemplo recente que vem do Reino Unido. Lá, além do governo não recolher impostos até o mês de junho, cerca de 38 bilhões de Libras (o que corresponde hoje a R$ 225 bilhões) serão destinados para pagar os salários dos trabalhadores para evitar as demissões.
Portanto, ao invés de voltarmos às propostas dos liberais da Grande Depressão (1929), sugere-se que avancemos na direção dos ensinamentos básicos do senhor Keynes que, em linhas gerais, afirmou que o melhor remédio para não se cair em uma crise econômica profunda é manter a demanda agregada em expansão. Para isso, recomenda-se neste momento o uso da boa teoria econômica a qual nos ensina que, diferentemente do que apregoam alguns economistas que contam com apoio da grande mídia burguesa, o Brasil não pode ir na contramão do que vem sendo feito na maioria dos países, sob o risco de não estimular as atividades econômicas e acabar aprofundando ainda mais os efeitos provocados pela pandemia do COVID-19. E todos sabemos qual a parcela da população que pagará o preço dessa insanidade.
Lauro Mattei – Professor Titular do departamento de Economia e Relações Internacionais e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. Artigo escrito em 22.03.2020
* A partir de agora a denominação “Ministro Fake Economics” substitui aquela que é recorrentemente utilizada pelo ignóbil Presidente da República quando se refere ao seu Ministro da Economia, conforme explicado no artigo “Crise econômica e as falácias do Posto Ipiranga” publicado na Carta Maior.
FONTE: GGN